Tradução de Jânio da Cunha Bastos
Não consigo entender por que
você diz que minha visão sobre o culto da igreja está "centrado no
homem" e também preocupado com a "mera edificação". Como isso
decorre de tudo o que eu disse? Na verdade, minhas ideias sobre o sacramento
provavelmente seriam chamadas de "mágicas" por muitos bons teólogos
modernos. É certo que, quanto mais plenamente alguém acredita que um evento
estritamente sobrenatural ocorra, menos importância deve-se atribuir ao
vestido, aos gestos e posição do sacerdote?
Eu concordo com você que o
sacerdote não está só para edificar as pessoas, mas para glorificar a Deus. Mas,
como um homem pode glorificar a Deus colocando obstáculos no caminho do povo? Especialmente
quando o elemento mais insignificante do "desejo clerical de ser o melhor"[1]- devo a frase a um clérigo
- está subjacente a algumas de suas excentricidades? Quão certo é essa passagem
na Imitação onde o celebrante é informado:
"Não consulte a sua própria devoção, mas a edificação do seu rebanho".
Esqueci como é em latim.
Agora, sobre as Cartas de Rose Macaulay. Como a você, a
mim também me deixou perplexo essa busca contínua de mais e mais orações. Se
ela estivesse apenas coletando-as como objetos
d’arte, eu poderia entendê-la. Seria
uma colecionadora nata. Mas tenho a impressão de que ela as colecionou para
usá-las; de que toda a sua vida de oração dependia do que podemos chamar de
orações "prontas" - orações escritas por outras pessoas.
Contudo, ainda que eu
estivesse tão perplexo quanto você, não me causou repulsão, como a você. A
primeira razão é que eu tive - e você não - a sorte de conhecê-la. Não cometa
erros. Ela era o tipo certo; uma das pessoas mais civilizadas que já conheci. A
segunda razão, como sempre disse, é que você é um fanático. Amplie sua mente,
Malcolm, amplie sua mente! É preciso todos os tipos de pessoas para fazer um
mundo; ou uma igreja. Isso pode ser ainda mais verdadeiro para o caso de uma
igreja. Se a graça
aperfeiçoa a natureza, ela deve enriquecer todas as nossas naturezas até
alcançar a plena riqueza da diversidade
que Deus pretendia quando Ele as criou, e o céu mostrará muito mais variedade
que o inferno. "Um só rebanho" não significa "um consórcio".
As rosas e os narcisos cultivados não são mais parecidos com as rosas e os
narcisos selvagens. O que mais me agradou da missa Ortodoxa Grega que uma vez
participei foi que não parecia haver nenhuma conduta prescrita para a
congregação. Alguns estavam de pé, outros de joelhos, outros sentados, e alguns
caminhavam; um rastejou pelo chão como uma lagarta. E a beleza disso era que
ninguém dava a menor atenção ao que os outros estavam fazendo. Gostaria que os
anglicanos seguíssemos o exemplo deles. Encontramos pessoas entre nós que estão
perturbadas porque alguém, no próximo banco, faz, ou não, o sinal da cruz. Elas
nem sequer deveriam ter visto, e muito menos censurar. "Quem és tu para
julgares o servo alheio?".
Não duvido, pois, que o método
de Rose Macaulay seja o adequado para ela. Para mim não o seria, e tampouco
para você.
Mesmo assim, não sou tão
purista neste assunto como costumava ser. Durante muitos anos depois da minha
conversão, nunca usei nenhuma forma pré-fabricada, exceto a Oração do Senhor. Na verdade, tentei orar sem
palavras – de não verbalizar os atos mentais. Mesmo ao orar por outros,
acredito que tendia a evitar seus nomes, e os substituía pelas imagens mentais de
cada um deles. Eu ainda acho que a oração sem palavras é a melhor - se alguém
pode realmente conseguir isso. Mas agora vejo que ao tentar convertê-la no meu
pão diário, esperava contar com uma força mental e espiritual maior do que realmente
tenho. Para orar com sucesso sem palavras é preciso "estar no topo da
forma". Caso contrário, os atos mentais se tornam apenas atos imaginativos
ou emocionais - e uma emoção fabricada é um caso miserável. Quando os momentos
dourados chegam, quando Deus permite que alguém ore sem palavras, quem, exceto
um tolo, rejeitaria o presente? Mas ele não dá - de qualquer maneira não para
mim - dia após dia esse presente. Meu erro foi o que Pascal, se bem me lembro,
chama "Erro do Estoicismo": pensar que o que podemos fazer às vezes podemos
fazer sempre.
E isso, você vê, faz a
escolha entre orações pré-fabricadas e orações com as suas próprias palavras,
um pouco menos importante para mim do que parece ser para você. Para mim, as palavras são, em
qualquer caso, secundárias. Elas são apenas uma âncora. Ou, devo dizer, são os
movimentos do bastão de um maestro: não a música. Elas servem para
canalizar a adoração, a ação de graças, a penitência ou a petição, que sem elas
- tais são nossas mentes - se espalham em poças de água largas e rasas. Não
importa muito quem primeiro as reuniu. Se elas são nossas próprias palavras, em
breve, por repetição inevitável, endurecerão em uma fórmula. Se elas são de
outra pessoa, devemos continuamente derramar sobre elas o nosso próprio
significado.
No momento acredito que o
melhor – os hábitos das pessoas mudam e, penso eu, devem mudar – é fazer das "minhas
próprias palavras" o tema principal, mas introduzo um mínimo de formas
pré-fabricadas.
Escrevendo a você, não
preciso enfatizar a importância de um simples tema central. Como Salomão disse
na dedicação do templo, cada homem que ora conhece "a praga de seu próprio
coração". Além disso, os confortos de seu próprio coração. Nenhuma outra
criatura é idêntica a mim; nenhuma outra situação idêntica à minha. Na verdade,
eu mesmo e minha situação estamos em mudança contínua. Uma forma pré-fabricada
não pode servir para minha comunicação com Deus mais do que poderia servir para
a minha comunicação com você.
Isso é óbvio. Talvez não
seja tão fácil convencê-lo de que o pré-fabricado também tem minimamente sua utilidade:
quero dizer para mim - não estou sugerindo regras para qualquer outra pessoa em
todo o mundo.
Em primeiro lugar, ele me
mantém em contato com a "sã doutrina". Deixado a si mesmo, pode-se facilmente
afastar-se da "fé uma vez dada" para um fantasma chamado "minha
religião".
Em segundo lugar, ele me
lembra "o que devo pedir" (talvez, especialmente, quando estou orando
por outras pessoas). A crise do momento atual, assim como o poste-telegráfico
mais próximo, sempre parece maior do que realmente é. Não existe o perigo de
que nossas grandes e permanentes necessidades objetivas - muitas vezes mais
importantes - possam ser eliminadas? Por sinal, essa é outra coisa a ser
evitada em um Livro de Oração revisado. "Os problemas contemporâneos"
podem reivindicar uma excessiva participação que é indevida. E quanto mais
"atualizado" o livro for, mais cedo será antiquado.
Finalmente, fornecem um
elemento do cerimonial. Em sua opinião, é exatamente isso o que não necessitamos.
Na minha, faz parte do que necessitamos. Eu vejo o que você quer dizer quando
diz que usar orações pré-fabricadas seria como "fazer amor com sua esposa com
algo de Petrarca ou Donne". (Aliás, você não pode citá-los para uma esposa
tão literária como Betty?). Não há paralelo.
Concordo plenamente que a
relação entre Deus e um homem é mais privada e íntima do que qualquer relação
possível entre dois semelhantes. Sim, mas ao mesmo tempo existe, de outra
forma, uma maior distância entre os participantes. Estamos nos aproximando -
bem, não vou dizer "o Outro", pois eu suspeito que isso não tem sentido,
mas sim ao Inimaginável e Absolutamente Outro. Devemos ter - eu espero que às
vezes tenhamos - simultaneamente consciência da proximidade mais próxima e da distância
infinita. Você torna as coisas muito bem ajustadas e confiantes. Sua analogia amorosa
precisa ser complementada por "eu caí aos Seus pés como um morto".
Eu acho que o ambiente de Baixa
Igreja em que eu cresci contribuía a estar muito cômodo e tranquilo em Sião.
Meu avô, me disseram, costumava dizer que "esperava ter conversas muito
interessantes com St. Paulo quando ele chegasse ao céu". Dois cavalheiros
clericais falando com tranquilidade em um clube! Nunca passou por sua mente a
ideia de que um encontro com São Paulo poderia ser uma experiência esmagadora mesmo
para um clérigo evangélico de boa família. Mas quando Dante viu os grandes apóstolos
no céu o impressionaram como montanhas.
Há muito a dizer contra
devoções aos santos; mas, pelo menos eles continuam lembrando que somos pessoas
muito pequenas em comparação com eles. Quanto mais pequenos não somos ante ao seu
Mestre?
Algumas orações formais,
prontas, me servem de corretivo para - bem, vamos chamá-la assim – desfaçatez[2]. Elas mantêm um lado do
paradoxo vivo. Claro que é apenas um lado. Seria melhor não ser reverente, do
que ter uma reverência que negasse a proximidade.
[1] “Clerical one-upmanship”. Algo como um sentimento de
superioridade.
[2]
“Cheek”. Possui várias acepções informais em inglês. Talvez pudesse ser
traduzida também como cinismo, impudor,
descaramento.
Original disponível em: <gutenberg.ca/ebooks/lewiscs-letterstomalcolm/lewiscs-letterstomalcolm-00-h.html>. Acesso em 5 mar. 2018.
Usamos também a tradução espanhola de José Luis Del Barco.
LEWIS, C. S. Si Diós no Escuchase: Cartas a Malcolm. Trad. de José Luis Del Barco. Madrid: Ediciones RIALP S. A., 2004.