segunda-feira, 16 de abril de 2018

CARTAS A MALCOLM: PRINCIPALMENTE SOBRE ORAÇÃO - CAPÍTULO 2


Tradução de Jânio da Cunha Bastos

Não consigo entender por que você diz que minha visão sobre o culto da igreja está "centrado no homem" e também preocupado com a "mera edificação". Como isso decorre de tudo o que eu disse? Na verdade, minhas ideias sobre o sacramento provavelmente seriam chamadas de "mágicas" por muitos bons teólogos modernos. É certo que, quanto mais plenamente alguém acredita que um evento estritamente sobrenatural ocorra, menos importância deve-se atribuir ao vestido, aos gestos e posição do sacerdote?
Eu concordo com você que o sacerdote não está só para edificar as pessoas, mas para glorificar a Deus. Mas, como um homem pode glorificar a Deus colocando obstáculos no caminho do povo? Especialmente quando o elemento mais insignificante do "desejo clerical de ser o melhor"[1]- devo a frase a um clérigo - está subjacente a algumas de suas excentricidades? Quão certo é essa passagem na Imitação onde o celebrante é informado: "Não consulte a sua própria devoção, mas a edificação do seu rebanho". Esqueci como é em latim.
Agora, sobre as Cartas de Rose Macaulay. Como a você, a mim também me deixou perplexo essa busca contínua de mais e mais orações. Se ela estivesse apenas coletando-as como objetos d’arte, eu poderia entendê-la. Seria uma colecionadora nata. Mas tenho a impressão de que ela as colecionou para usá-las; de que toda a sua vida de oração dependia do que podemos chamar de orações "prontas" - orações escritas por outras pessoas.
Contudo, ainda que eu estivesse tão perplexo quanto você, não me causou repulsão, como a você. A primeira razão é que eu tive - e você não - a sorte de conhecê-la. Não cometa erros. Ela era o tipo certo; uma das pessoas mais civilizadas que já conheci. A segunda razão, como sempre disse, é que você é um fanático. Amplie sua mente, Malcolm, amplie sua mente! É preciso todos os tipos de pessoas para fazer um mundo; ou uma igreja. Isso pode ser ainda mais verdadeiro para o caso de uma igreja. Se a graça aperfeiçoa a natureza, ela deve enriquecer todas as nossas naturezas até alcançar a plena riqueza  da diversidade que Deus pretendia quando Ele as criou, e o céu mostrará muito mais variedade que o inferno. "Um só rebanho" não significa "um consórcio". As rosas e os narcisos cultivados não são mais parecidos com as rosas e os narcisos selvagens. O que mais me agradou da missa Ortodoxa Grega que uma vez participei foi que não parecia haver nenhuma conduta prescrita para a congregação. Alguns estavam de pé, outros de joelhos, outros sentados, e alguns caminhavam; um rastejou pelo chão como uma lagarta. E a beleza disso era que ninguém dava a menor atenção ao que os outros estavam fazendo. Gostaria que os anglicanos seguíssemos o exemplo deles. Encontramos pessoas entre nós que estão perturbadas porque alguém, no próximo banco, faz, ou não, o sinal da cruz. Elas nem sequer deveriam ter visto, e muito menos censurar. "Quem és tu para julgares o servo alheio?".
Não duvido, pois, que o método de Rose Macaulay seja o adequado para ela. Para mim não o seria, e tampouco para você.
Mesmo assim, não sou tão purista neste assunto como costumava ser. Durante muitos anos depois da minha conversão, nunca usei nenhuma forma pré-fabricada, exceto a Oração do Senhor. Na verdade, tentei orar sem palavras – de não verbalizar os atos mentais. Mesmo ao orar por outros, acredito que tendia a evitar seus nomes, e os substituía pelas imagens mentais de cada um deles. Eu ainda acho que a oração sem palavras é a melhor - se alguém pode realmente conseguir isso. Mas agora vejo que ao tentar convertê-la no meu pão diário, esperava contar com uma força mental e espiritual maior do que realmente tenho. Para orar com sucesso sem palavras é preciso "estar no topo da forma". Caso contrário, os atos mentais se tornam apenas atos imaginativos ou emocionais - e uma emoção fabricada é um caso miserável. Quando os momentos dourados chegam, quando Deus permite que alguém ore sem palavras, quem, exceto um tolo, rejeitaria o presente? Mas ele não dá - de qualquer maneira não para mim - dia após dia esse presente. Meu erro foi o que Pascal, se bem me lembro, chama "Erro do Estoicismo": pensar que o que podemos fazer às vezes podemos fazer sempre.
E isso, você vê, faz a escolha entre orações pré-fabricadas e orações com as suas próprias palavras, um pouco menos importante para mim do que parece ser para você. Para mim, as palavras são, em qualquer caso, secundárias. Elas são apenas uma âncora. Ou, devo dizer, são os movimentos do bastão de um maestro: não a música. Elas servem para canalizar a adoração, a ação de graças, a penitência ou a petição, que sem elas - tais são nossas mentes - se espalham em poças de água largas e rasas. Não importa muito quem primeiro as reuniu. Se elas são nossas próprias palavras, em breve, por repetição inevitável, endurecerão em uma fórmula. Se elas são de outra pessoa, devemos continuamente derramar sobre elas o nosso próprio significado.
No momento acredito que o melhor – os hábitos das pessoas mudam e, penso eu, devem mudar – é fazer das "minhas próprias palavras" o tema principal, mas introduzo um mínimo de formas pré-fabricadas.
Escrevendo a você, não preciso enfatizar a importância de um simples tema central. Como Salomão disse na dedicação do templo, cada homem que ora conhece "a praga de seu próprio coração". Além disso, os confortos de seu próprio coração. Nenhuma outra criatura é idêntica a mim; nenhuma outra situação idêntica à minha. Na verdade, eu mesmo e minha situação estamos em mudança contínua. Uma forma pré-fabricada não pode servir para minha comunicação com Deus mais do que poderia servir para a minha comunicação com você.
Isso é óbvio. Talvez não seja tão fácil convencê-lo de que o pré-fabricado também tem minimamente sua utilidade: quero dizer para mim - não estou sugerindo regras para qualquer outra pessoa em todo o mundo.
Em primeiro lugar, ele me mantém em contato com a "sã doutrina". Deixado a si mesmo, pode-se facilmente afastar-se da "fé uma vez dada" para um fantasma chamado "minha religião".
Em segundo lugar, ele me lembra "o que devo pedir" (talvez, especialmente, quando estou orando por outras pessoas). A crise do momento atual, assim como o poste-telegráfico mais próximo, sempre parece maior do que realmente é. Não existe o perigo de que nossas grandes e permanentes necessidades objetivas - muitas vezes mais importantes - possam ser eliminadas? Por sinal, essa é outra coisa a ser evitada em um Livro de Oração revisado. "Os problemas contemporâneos" podem reivindicar uma excessiva participação que é indevida. E quanto mais "atualizado" o livro for, mais cedo será antiquado.
Finalmente, fornecem um elemento do cerimonial. Em sua opinião, é exatamente isso o que não necessitamos. Na minha, faz parte do que necessitamos. Eu vejo o que você quer dizer quando diz que usar orações pré-fabricadas seria como "fazer amor com sua esposa com algo de Petrarca ou Donne". (Aliás, você não pode citá-los para uma esposa tão literária como Betty?). Não há paralelo.
Concordo plenamente que a relação entre Deus e um homem é mais privada e íntima do que qualquer relação possível entre dois semelhantes. Sim, mas ao mesmo tempo existe, de outra forma, uma maior distância entre os participantes. Estamos nos aproximando - bem, não vou dizer "o Outro", pois eu suspeito que isso não tem sentido, mas sim ao Inimaginável e Absolutamente Outro. Devemos ter - eu espero que às vezes tenhamos - simultaneamente consciência da proximidade mais próxima e da distância infinita. Você torna as coisas muito bem ajustadas e confiantes. Sua analogia amorosa precisa ser complementada por "eu caí aos Seus pés como um morto".
Eu acho que o ambiente de Baixa Igreja em que eu cresci contribuía a estar muito cômodo e tranquilo em Sião. Meu avô, me disseram, costumava dizer que "esperava ter conversas muito interessantes com St. Paulo quando ele chegasse ao céu". Dois cavalheiros clericais falando com tranquilidade em um clube! Nunca passou por sua mente a ideia de que um encontro com São Paulo poderia ser uma experiência esmagadora mesmo para um clérigo evangélico de boa família. Mas quando Dante viu os grandes apóstolos no céu o impressionaram como montanhas.
Há muito a dizer contra devoções aos santos; mas, pelo menos eles continuam lembrando que somos pessoas muito pequenas em comparação com eles. Quanto mais pequenos não somos ante ao seu Mestre?
Algumas orações formais, prontas, me servem de corretivo para - bem, vamos chamá-la assim – desfaçatez[2]. Elas mantêm um lado do paradoxo vivo. Claro que é apenas um lado. Seria melhor não ser reverente, do que ter uma reverência que negasse a proximidade.




[1] “Clerical one-upmanship”. Algo como um sentimento de superioridade.
[2] “Cheek”. Possui várias acepções informais em inglês. Talvez pudesse ser traduzida também como cinismo, impudor, descaramento.

Original disponível em: <gutenberg.ca/ebooks/lewiscs-letterstomalcolm/lewiscs-letterstomalcolm-00-h.html>. Acesso em 5 mar. 2018.

Usamos também a tradução espanhola de José Luis Del Barco.
LEWIS, C. S. Si Diós no Escuchase: Cartas a Malcolm. Trad. de José Luis Del Barco. Madrid: Ediciones RIALP S. A., 2004.

REFLEXÕES NO SALMO 119

A JUVENTUDE PIEDOSA
Como pode o jovem ter uma vida limpa e pura? Vigiando os seus passos conforme a tua palavra. (Sl 119.9, Bíblia Viva)

A pergunta desta estrofe, ainda que retórica, põe em evidência um dos maiores problemas práticos da vida: como (ou com o que) viver uma vida irrepreensível? Ou, nas palavras de Spurgeon: “como (o jovem) poderá conquistar o certo e conservar o certo?”[1]. Não precisa dizer que quem escreve essas palavras é possivelmente um velho. Como professor de sabedoria, o sábio está preocupado com a instrução dos jovens. A falta de experiência é notória nessa idade. Eis aí a razão porque o sábio diz ao filho ou discípulo (ver Pv 1:4; 25:12-13; Ec 11:9; 12:1), que ele pode manter-se “puro” - equivalente a “irrepreensível” (v. 1) e “firme” (v. 5) - pela prática da piedade[2]. 

“Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, não tem lugar aqui. Por sua experiência, o professor sabe que obedecer à vontade revelada de Deus é o único caminho para qualquer membro da comunidade da aliança viver irrepreensivelmente. Assim, a grande pergunta, a que vem antes de todas, que o jovem piedoso deve se propor não é sobre com quem vai se casar, ou que faculdade vai cursar, ou se será bem sucedido profissionalmente. Todas essas perguntas são válidas e importantes. Entretanto, na aurora da vida, a pergunta mais importante é aquela que afetará também seu ocaso: como viver de modo irrepreensível?

A pergunta é importante, e suscita outras tantas perguntas igualmente importantes e complexas. Elifaz e Bildade, dois amigos de Jó, lhe fizeram as seguintes perguntas, respectivamente: "Como o homem pode ser puro? Como pode ser justo quem nasce de mulher? Como pode então o homem ser justo diante de Deus? Como pode ser puro quem nasce de mulher?” (Jó 15:14; 25:4, NVI). Para piorar, Salomão dispara à queima roupa a seguinte indagação: “Quem poderá dizer: ‘Purifiquei o coração; estou livre do meu pecado?’" (Pv 20:9, NVI). Esses versículos são cristalinos no seu diagnóstico do estado moral e espiritual do homem: diante de Deus e comparada com Deus, toda a humanidade permanece manchada e suja.

No entanto, apesar de flagrante situação, Isaías exorta as pessoas a se purificarem: “As vossas mãos estão cheias de sangue: lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!” (Is 1:15a-17). “Mesmo se não pudermos nos tornar absolutamente puros, somos responsáveis ​​por nos purificar do tipo de imundície que Isaías descreve. A impossibilidade da perfeição sem pecado não nos desculpa de levar a sério as exigências de Deus”[3]. 

As perguntas parecem convergir para a resposta do sábio: “vigiando os seus passos conforme a tua palavra”. A implicação é que o jovem manter-se-á puro à medida que comparar, controlar, vigiar, observar sua conduta de acordo com a palavra do Senhor. O conselho de Spurgeon[4] ainda é válido: “querido jovem, que a Bíblia seja seu mapa, e que você exerça grande vigilância para que seu caminho se amolde a suas diretrizes”.

Antes de encerrar destacamos o termo "Palavra" (dābār), que ocorre vinte e quatro vezes neste salmo. Seu significado básico é o de que qualquer palavra que proceda da boca do Senhor é dābār. É uma designação mais geral para a revelação divina, seja do ponto de vista da expectativa ou da promessa[5]. Da expectativa, porque se espera dos membros da aliança que vivam pelo mandamento do Senhor. Da promessa, porque se sabe que eles falham em cumprir o seu dever, por isso, a promessa é que Deus os ajudará graciosamente a fazê-lo.

À luz da Nova Aliança, a pergunta de Elifaz e Bildade só encontrou uma resposta satisfatória na cruz de Cristo. Como pode ser justo quem nasce de mulher? A resposta de Paulo é que só Deus pode nos justificar. Sabemos que pela obediência à lei o homem não alcançou a justiça de Deus (Rm 7). Quanto mais tentava obedecer à lei, tanto mais ficava evidente o abismo que o separava do elevado padrão de Deus. Desse modo, somente quando confiamos inteiramente em Cristo Jesus para a nossa salvação é que entendemos que “o homem é justificado pela fé, independente da obediência à lei” (Rom 3:21-28, NVI). Não foi o que fizemos que forçou Deus a nos declarar justo, mas o que Cristo fez por nós e em nosso lugar. O único homem justo que nasceu de mulher foi Cristo. A razão é que somente um homem puro poderia satisfazer as exigências da justiça de Deus. Como pode ser justo quem nasce de mulher? Crendo em Cristo, a nossa propiciação.

Querido jovem, em Cristo Jesus você tem uma nova vida. O fato de não sermos justificados diante de Deus pela lei, não nos exime de obedecer a Palavra de Deus. Não a obedecemos com a expectativa de sermos perfeitos ou salvos. Como já dissemos isso nos é impossível. Obedecemos porque amamos a Deus. Na caminhada haverá muitos percalços e até fracassos. Mas não desista. Siga em frente. A boa nova do evangelho é que Deus proveu um meio para nos purificar: o sangue de Jesus (1 Jo 1.7-10, NVI). Siga sempre a orientação da Palavra de Deus e você terá uma vida limpa e pura. Que Deus o ajude.

Jânio da Cunha Bastos

[1] SPURGEON, C. H. Salmo 119: o alfabeto de ouro. Trad. Valer Graciano Martins. São Paulo: Edições Parakletos, 2001. p. 26.

[2] VANGEMEREN, Willem A. The expositor’s Bible commentary: Psalms. Michigan: Zondervan, 2008.

[3] GOLDINGAY, John. Baker commentary on the Old Testament: wisdom and psalms. Michigan: Baker Academic, 2013.

[4] Idem, p. 27.

[5] VANGEMEREN, 2008.

terça-feira, 3 de abril de 2018

CARTAS A MALCOLM: PRINCIPALMENTE SOBRE ORAÇÃO - CAPÍTULO 1

Traduzido por Jânio da Cunha Bastos

Sou completamente favorável à sua ideia de que devemos voltar ao nosso antigo plano de ter um assunto mais ou menos definido - um agendum - para nossas cartas. Quando nos separamos pela última vez, a correspondência languidesceu por falta disso. Quão bem fizemos em nossos dias de graduação com nossas intermináveis cartas sobre a República, e metros (versos) clássicos, e o que era então a "nova" psicologia! Nada faz um amigo ausente tão presente como um desacordo. 

A oração, que é o tema que você sugere, é um assunto que me preocupa sobremaneira. Quero dizer, oração privada. Se você está pensando em oração corporativa, então não vou participar. Não há assunto no mundo (sempre exceto o esporte) sobre o qual tenho menos a dizer do que sobre a liturgia. E o quase nada que tenho a dizer pode também ser descartado nesta carta. 

Eu acho que o nosso dever como leigos é receber o que nos é dado e contentarmo-nos com ele. E acho que isso seria muito mais fácil se o que nos foi dado fosse o mesmo sempre e em todos os lugares. 

A julgar por seus hábitos, muito poucos clérigos anglicanos têm este ponto de vista. Parece como se eles acreditassem que as pessoas podem ser atraídas à igreja por animações, claridade, vagarosidade, abreviações, simplificações e complicações incessantes do culto. E é provavelmente verdade que um clérigo novo e perspicaz geralmente poderá formar dentro de sua paróquia uma minoria que seja a favor de suas inovações. A maioria, eu acredito, nunca está. Aqueles que permanecem - muitos abandonam a igreja completamente - simplesmente suportam. 

Isso é simplesmente porque a maioria está aferrada à tradição? Eu acho que não. Eles têm uma boa razão para o seu conservadorismo. A novidade, simplesmente como tal, pode ter apenas um valor de entretenimento. E eles não vão à igreja para serem entretidos. Eles vão usar o culto ou, se você preferir, para pô-lo em prática (traz a ideia de representar). Todo culto é uma estrutura de atos e palavras através dos quais recebemos um sacramento, ou nos arrependemos, ou suplicamos, ou adoramos. E isso nos capacita a fazer todas essas coisas da melhor maneira possível - se você gostar mais, "funciona" melhor - quando, por uma longa familiaridade, não precisamos pensar nele (no culto). Enquanto você tiver que observar e contar os passos, você ainda não está dançando, mas apenas aprendendo a dançar. Um bom sapato é aquele que você não nota. Uma boa leitura torna-se possível quando você não precisa pensar conscientemente sobre os olhos, nem sobre a luz, nem sobre a impressão, nem sobre as letras (ou ortografia). O serviço perfeito da igreja seria aquele do qual quase não estivéssemos conscientes; nossa atenção estaria em Deus. 

Mas todas as novidades evitam isso. Ela fixa nossa atenção no próprio culto; e pensar em adoração é uma coisa diferente de adorar. A pergunta importante sobre o Graal era esta: "para que serve? É uma louca idolatria que engrandece mais ao culto do que o deus". 

Uma coisa ainda pior pode acontecer. A novidade pode fazer com que nossa atenção não esteja nem mesmo no culto, mas no celebrante. Você sabe o que eu quero dizer. Se tentar evitá-lo, a pergunta: "o que diabos ele está fazendo agora?", irá lhe incomodar. Isso destrói a devoção que alguém tenha. Há realmente alguma desculpa para o homem que disse: "Eu gostaria que eles se lembrassem de que a tarefa dada a Pedro foi: ‘apascenta as minhas ovelhas’, não ‘faça experimentos com meus ratos’, nem tampouco ‘ensine novos truques aos meus cães’". 

Assim, toda a minha posição litúrgica se resume a uma súplica em favor da permanência e da uniformidade. Posso praticar quase qualquer tipo de culto com a única condição de que esteja fixo. Mas, se cada forma me é arrancada, no preciso momento em que estou começando a me familiarizar com elas, então nunca posso fazer nenhum progresso na cerimônia (arte) do culto. Não me dá a chance de adquirir o hábito - habito dell' arte. 

Pode ser que algumas variações que me parecem meramente questões de gosto realmente envolvam graves diferenças doutrinárias. Mas, não ocorrerá o mesmo com todos? Pois, se as diferenças doutrinárias importantes são tão numerosas quanto as variações na prática, teremos que concluir que não existe tal coisa como a Igreja da Inglaterra. E de qualquer forma, a Inquietação Litúrgica não é um fenômeno puramente anglicano. Ouvi dizer que os católicos romanos se queixam disso também. 

E isso me traz de volta ao meu ponto de partida. Nossa tarefa, como leigos, é simplesmente continuar com firmeza e contentar-nos com isso. Qualquer tendência ou preferência apaixonada por um tipo de culto deve ser considerada simplesmente como uma tentação. Igrejas partidárias são o meu bête noir (pesadelo). E se os evitarmos, não realizamos uma tarefa muito útil? Os pastores se vão, "cada um à sua própria ocupação" e desaparecem por diversos pontos do horizonte. Se as ovelhas se agasalharem pacientemente juntas e continuarem balando, não poderia ocorrer que finalmente façam voltar os pastores? (As vitórias inglesas às vezes não foram conquistadas pelas tropas apesar dos generais?). 

Quanto às palavras do culto - a liturgia no sentido mais estreito -, a questão é bastante diferente. Se você tiver uma liturgia vernácula, deve ser uma liturgia em mudança; caso contrário, será, finalmente, conhecida apenas por nome. O ideal do "inglês eterno" é um puro absurdo. Nenhuma língua viva pode ser eterna. Você também poderia pedir um rio imóvel. 

Eu acho que teria sido melhor, se fosse possível, que as mudanças necessárias deveriam ter ocorrido gradualmente e (para a maioria das pessoas) imperceptivelmente; um pouco aqui e um pouco lá; uma palavra obsoleta substituída em um século - como a mudança gradual da ortografia em sucessivas edições de Shakespeare. Como as coisas estão, devemos nos adaptar, se podemos conciliar assim mesmo ao governo, a um novo Livro (de oração comum). 

Se estivéssemos - agradeço à minha boa estrela que não estou - em posição de dar conselhos aos seus autores, você teria algum conselho para dar? O meu não poderia ultrapassar os cuidados inúteis: "Tome cuidado. É tão fácil quebrar ovos sem fazer omeletes". 

A liturgia é um dos poucos elementos de unidade restantes na nossa Igreja, horrivelmente dividida. O bem a ser feito mediante a revisão precisa ser muito grande e muito claro antes de jogar esse fora. Você pode imaginar qualquer novo Livro que não seja uma fonte de novo cisma? 

A maioria dos que insistem em uma revisão parecem desejar que ela sirva a dois propósitos: o de modernizar a linguagem no interesse da inteligibilidade e a melhoria doutrinária. As duas operações - cada uma dolorosa e cada uma perigosa - devem ser realizadas ao mesmo tempo? Será que o paciente sobreviverá? Quais são as doutrinas sobre as quais há acordo que devem ser incorporadas no novo Livro e quanto tempo o acordo durará? Pergunto com trepidação porque li um homem, no outro dia, que parecia desejar que tudo no velho Livro de Orações que fosse incompatível com o freudismo ortodoxo deveria ser excluído. 

Para quem devemos prover a revisão da linguagem? Um pároco rural conhecido meu perguntou ao seu sacristão o que ele entendia por indiferentemente na frase "administrar verdadeiramente e de maneira indiferente a justiça". O homem respondeu: "Isso significa não fazer distinção entre um sujeito e outro". "E o que isso significaria se dissesse imparcialmente?", Perguntou o pároco. "Não sei. Nunca ouvi essa palavra", disse o sacristão. Aqui, você vê, temos uma mudança destinada a facilitar as coisas. Mas, não consegue, nem no caso das pessoas cultas, que compreendem indiferentemente, nem no dos inteiramente incultos, que não entendem o significado de imparcialmente. Isso ajuda apenas uma área média da congregação, que possivelmente nem é a maioria. Esperemos que os revisores se preparem para o seu trabalho através de um estudo empírico prolongado sobre o discurso popular como é de fato, não como nós (a priori) supomos que seja. Quantos estudiosos sabem (o que descobri por acidente) que quando as pessoas incultas dizem impessoal, às vezes, querem dizer incorpóreo

Quais são as expressões arcaicas, mas não ininteligíveis? ("Sede corajosos"). Me parece que as pessoas reagem ao arcaísmo de maneira diversa. A alguns lhes provoca hostilidade: converte em irreal o que se diz. Para outros, não necessariamente os mais educados, é altamente numinoso e uma ajuda real à devoção. Não podemos agradar a ambos. 

Eu sei que deve haver mudanças. Mas esse é o momento certo? Dois sinais do momento certo me ocorrem. Um seria uma unidade entre todos nós que permitisse à Igreja - não a um partido momentaneamente triunfante - falar sobre o novo trabalho com uma voz unida. O outro seria a presença manifesta, em algum lugar da Igreja, do talento especificamente literário necessário para compor uma boa oração. A prosa precisa ser não só muito boa, mas muito boa de uma maneira muito especial, para fazer frente à leitura reiterada em voz alta. Cranmer pode ter seus defeitos como teólogo, mas, como estilista, ele supera todos os modernos e muitos de seus predecessores. Não aprecio nenhum desses sinais no momento. 

No entanto, todos queremos “mexer”. Até mesmo eu gostaria de ver retirada do ofertório as palavras "Que tua luz brilhe sobre os homens". Soa, nesse contexto, como uma exortação para dar a esmola para que seja visto pelos homens. 

Eu tinha a intenção de continuar a carta ocupando-me do que você disse sobre as cartas de Rose Macaulay, mas isso deve aguardar até a próxima semana. 

Original disponível em: <gutenberg.ca/ebooks/lewiscs-letterstomalcolm/lewiscs-letterstomalcolm-00-h.html>. Acesso em 5 mar. 2018.

Usamos também a tradução espanhola de José Luis Del Barco.
LEWIS, C. S. Si Diós no Escuchase: Cartas a Malcolm. Trad. de José Luis Del Barco. Madrid: Ediciones RIALP S. A., 2004.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Reflexões no Salmo 119

DETERMINAÇÃO E DEPENDÊNCIA[1]

Obedecerei às tuas leis; peço-te que não me abandones nunca (Sl 119.8, NTLH). 

C. S. Peirce (1838-1914), filósofo norte-americano, no texto “Ideais de Conduta”[2], traçou três aspectos da passagem da reflexão sobre os ideais de conduta para uma ação efetiva. Essa reflexão afeta, primeiramente, a sua disposição. A disposição é a inclinação, a propensão, o desejo, que surge no agente, que o leva a considerar como agirá. O passo seguinte da reflexão é a resolução. A resolução é o plano, o diagrama ou imagem mental desse como agirá. A disposição e a resolução ainda não influenciam necessariamente a conduta. Por isso, o próximo passo é a determinação. Como escreve o filósofo, “através de um processo similar àquele de imprimir uma lição sobre sua memória, cujo resultado é que a resolução, ou fórmula mental, é convertida em uma determinação, pela qual eu quero dizer uma ação realmente eficiente”. Resumindo: primeiro, o desejo de agir sob um determinado ideal, segundo, o plano que delineia como agiremos, e terceiro, a ação propriamente dita. 

Esse processo, é claro, não é tão simples assim. Boa parte dele é inconsciente. Mas ele nos ajuda entender o que o salmista está dizendo no parágrafo inteiro (vv. 1-8). Primeiro, o desejo de agir conforme o ideal da vontade de Deus, revelado em sua palavra, é afirmado no versículo 5. “Como desejo obedecer às tuas ordens e cumpri-las com fidelidade!” (NTLH). Segundo, o plano que delineia “como agir” é sublinhado nos versos 1 a 4 e 6 e 7: “Felizes são os que não podem ser acusados de nada, que vivem de acordo com a lei de Deus, o SENHOR! Felizes os que guardam os mandamentos de Deus e lhe obedecem de todo o coração! Felizes os que não praticam o mal, os que andam nos caminhos de Deus! Tu, ó Deus, nos deste as tuas leis e mandaste que as cumpríssemos fielmente. Se eu der atenção a todos os teus mandamentos, não passarei vergonha. Com um coração sincero eu te louvarei à medida que for aprendendo os teus justos ensinamentos” (NTLH). Terceiro, a determinação de agir efetivamente segundo o ideal: “Obedecerei às tuas leis; peço-te que não me abandones nunca” (Sl 119.8, NTLH). 

Mas, podemos atingir esse ideal por simples atos de vontade? A resposta é não. Por essa razão ele continua a oração iniciada no verso 5. Sua petição é para que Deus não o abandone. Aqui está explícito que YHWH pode ser o agente do abandono, que tem implicações devastadoras, como a morte[3]. Mas, qual é a natureza desse abandono? Calvino[4] entende esse abandono como as provações da nossa fé. O argumento do suplicante seria, então, que manter as leis de YHWH fornece uma base para que isso nunca aconteça, ou não aconteça “completamente”, que YHWH não deveria abandona-lo excessivamente ou seriamente[5]. Assim, Calvino parafraseou o versículo na forma de uma oração: “Ó Deus, tu vês o meu estado de espírito; e, sendo eu apenas um homem, não ocultes de mim, por tempo demasiadamente longo, os sinais de teu favor, nem demores a ajudar-me, por mais tempo do que sou capaz de suportar, para que, imaginando estar esquecido de ti, não me afaste do rumo certo da piedade”[6]

Desejar, planejar e agir são os passos dados na direção do ideal de conduta delineado no primeiro parágrafo do Salmo 119. Determinação e dependência são os termos que sublinham as duas partes do texto em epígrafe. Ao mesmo tempo em que assume o compromisso e responsabilidade de viver segundo a Lei de Deus, o salmista reconhece que sem a ajuda da graça divina não iria muito longe nesse caminho. Para encerrar a nossa reflexão, julgamos oportuno citar Barnes, para quem a “sua confiança (a do salmista) de que ele guardaria os mandamentos de Deus baseava-se na oração de que Deus não o deixaria. Não há outro motivo de persuasão para podermos guardar os mandamentos de Deus do que aquele que repousa na crença e na esperança de que Ele não nos deixará”[7]

[1] SPURGEON, C. H. Salmo 119: o alfabeto de ouro. Trad. Valer Graciano Martins. São Paulo: Edições Parakletos, 2001. p. 23. Spurgeon fala de Resolução e Dependência. Aqui preferimos o termo “determinação” em vez de “resolução”. 

[2] PEIRCE, C. S. Ideais of conduct. Trad. e introd. de Ivo Assad Ibri. Trans/Form/Ação, São Paulo, 8:79-95, 1985. 

[3] GOLDINGAY, John. Baker commentary on the Old Testament: wisdom and psalms. Michigan: Baker Academic, 2013. 

[4] CALVINO, João. Salmos. Vol. 4. Trad. Valer Graciano Martins. São Paulo: Editora Fiel, 2013. (Ebook). 

[5] GOLDINGAY, 2013. 

[6] CALVINO, 2013. 

[7] BARNES, Albert. Notes on the Whole Bible. Disponível em: <www.studylight.org/commentaries/bnb/psalms-119.html>. Acesso em: 02 abr. 18.

COMO ERAM AS MANIFESTAÇÕES DO ESPÍRITO SANTO NO ANTIGO E NO NOVO TESTAMENTO?

O Evangelho de João relata uma passagem da vida de Jesus que leva algumas pessoas a entender que o Espírito Santo não agia entre o povo d...