segunda-feira, 16 de abril de 2018

CARTAS A MALCOLM: PRINCIPALMENTE SOBRE ORAÇÃO - CAPÍTULO 2


Tradução de Jânio da Cunha Bastos

Não consigo entender por que você diz que minha visão sobre o culto da igreja está "centrado no homem" e também preocupado com a "mera edificação". Como isso decorre de tudo o que eu disse? Na verdade, minhas ideias sobre o sacramento provavelmente seriam chamadas de "mágicas" por muitos bons teólogos modernos. É certo que, quanto mais plenamente alguém acredita que um evento estritamente sobrenatural ocorra, menos importância deve-se atribuir ao vestido, aos gestos e posição do sacerdote?
Eu concordo com você que o sacerdote não está só para edificar as pessoas, mas para glorificar a Deus. Mas, como um homem pode glorificar a Deus colocando obstáculos no caminho do povo? Especialmente quando o elemento mais insignificante do "desejo clerical de ser o melhor"[1]- devo a frase a um clérigo - está subjacente a algumas de suas excentricidades? Quão certo é essa passagem na Imitação onde o celebrante é informado: "Não consulte a sua própria devoção, mas a edificação do seu rebanho". Esqueci como é em latim.
Agora, sobre as Cartas de Rose Macaulay. Como a você, a mim também me deixou perplexo essa busca contínua de mais e mais orações. Se ela estivesse apenas coletando-as como objetos d’arte, eu poderia entendê-la. Seria uma colecionadora nata. Mas tenho a impressão de que ela as colecionou para usá-las; de que toda a sua vida de oração dependia do que podemos chamar de orações "prontas" - orações escritas por outras pessoas.
Contudo, ainda que eu estivesse tão perplexo quanto você, não me causou repulsão, como a você. A primeira razão é que eu tive - e você não - a sorte de conhecê-la. Não cometa erros. Ela era o tipo certo; uma das pessoas mais civilizadas que já conheci. A segunda razão, como sempre disse, é que você é um fanático. Amplie sua mente, Malcolm, amplie sua mente! É preciso todos os tipos de pessoas para fazer um mundo; ou uma igreja. Isso pode ser ainda mais verdadeiro para o caso de uma igreja. Se a graça aperfeiçoa a natureza, ela deve enriquecer todas as nossas naturezas até alcançar a plena riqueza  da diversidade que Deus pretendia quando Ele as criou, e o céu mostrará muito mais variedade que o inferno. "Um só rebanho" não significa "um consórcio". As rosas e os narcisos cultivados não são mais parecidos com as rosas e os narcisos selvagens. O que mais me agradou da missa Ortodoxa Grega que uma vez participei foi que não parecia haver nenhuma conduta prescrita para a congregação. Alguns estavam de pé, outros de joelhos, outros sentados, e alguns caminhavam; um rastejou pelo chão como uma lagarta. E a beleza disso era que ninguém dava a menor atenção ao que os outros estavam fazendo. Gostaria que os anglicanos seguíssemos o exemplo deles. Encontramos pessoas entre nós que estão perturbadas porque alguém, no próximo banco, faz, ou não, o sinal da cruz. Elas nem sequer deveriam ter visto, e muito menos censurar. "Quem és tu para julgares o servo alheio?".
Não duvido, pois, que o método de Rose Macaulay seja o adequado para ela. Para mim não o seria, e tampouco para você.
Mesmo assim, não sou tão purista neste assunto como costumava ser. Durante muitos anos depois da minha conversão, nunca usei nenhuma forma pré-fabricada, exceto a Oração do Senhor. Na verdade, tentei orar sem palavras – de não verbalizar os atos mentais. Mesmo ao orar por outros, acredito que tendia a evitar seus nomes, e os substituía pelas imagens mentais de cada um deles. Eu ainda acho que a oração sem palavras é a melhor - se alguém pode realmente conseguir isso. Mas agora vejo que ao tentar convertê-la no meu pão diário, esperava contar com uma força mental e espiritual maior do que realmente tenho. Para orar com sucesso sem palavras é preciso "estar no topo da forma". Caso contrário, os atos mentais se tornam apenas atos imaginativos ou emocionais - e uma emoção fabricada é um caso miserável. Quando os momentos dourados chegam, quando Deus permite que alguém ore sem palavras, quem, exceto um tolo, rejeitaria o presente? Mas ele não dá - de qualquer maneira não para mim - dia após dia esse presente. Meu erro foi o que Pascal, se bem me lembro, chama "Erro do Estoicismo": pensar que o que podemos fazer às vezes podemos fazer sempre.
E isso, você vê, faz a escolha entre orações pré-fabricadas e orações com as suas próprias palavras, um pouco menos importante para mim do que parece ser para você. Para mim, as palavras são, em qualquer caso, secundárias. Elas são apenas uma âncora. Ou, devo dizer, são os movimentos do bastão de um maestro: não a música. Elas servem para canalizar a adoração, a ação de graças, a penitência ou a petição, que sem elas - tais são nossas mentes - se espalham em poças de água largas e rasas. Não importa muito quem primeiro as reuniu. Se elas são nossas próprias palavras, em breve, por repetição inevitável, endurecerão em uma fórmula. Se elas são de outra pessoa, devemos continuamente derramar sobre elas o nosso próprio significado.
No momento acredito que o melhor – os hábitos das pessoas mudam e, penso eu, devem mudar – é fazer das "minhas próprias palavras" o tema principal, mas introduzo um mínimo de formas pré-fabricadas.
Escrevendo a você, não preciso enfatizar a importância de um simples tema central. Como Salomão disse na dedicação do templo, cada homem que ora conhece "a praga de seu próprio coração". Além disso, os confortos de seu próprio coração. Nenhuma outra criatura é idêntica a mim; nenhuma outra situação idêntica à minha. Na verdade, eu mesmo e minha situação estamos em mudança contínua. Uma forma pré-fabricada não pode servir para minha comunicação com Deus mais do que poderia servir para a minha comunicação com você.
Isso é óbvio. Talvez não seja tão fácil convencê-lo de que o pré-fabricado também tem minimamente sua utilidade: quero dizer para mim - não estou sugerindo regras para qualquer outra pessoa em todo o mundo.
Em primeiro lugar, ele me mantém em contato com a "sã doutrina". Deixado a si mesmo, pode-se facilmente afastar-se da "fé uma vez dada" para um fantasma chamado "minha religião".
Em segundo lugar, ele me lembra "o que devo pedir" (talvez, especialmente, quando estou orando por outras pessoas). A crise do momento atual, assim como o poste-telegráfico mais próximo, sempre parece maior do que realmente é. Não existe o perigo de que nossas grandes e permanentes necessidades objetivas - muitas vezes mais importantes - possam ser eliminadas? Por sinal, essa é outra coisa a ser evitada em um Livro de Oração revisado. "Os problemas contemporâneos" podem reivindicar uma excessiva participação que é indevida. E quanto mais "atualizado" o livro for, mais cedo será antiquado.
Finalmente, fornecem um elemento do cerimonial. Em sua opinião, é exatamente isso o que não necessitamos. Na minha, faz parte do que necessitamos. Eu vejo o que você quer dizer quando diz que usar orações pré-fabricadas seria como "fazer amor com sua esposa com algo de Petrarca ou Donne". (Aliás, você não pode citá-los para uma esposa tão literária como Betty?). Não há paralelo.
Concordo plenamente que a relação entre Deus e um homem é mais privada e íntima do que qualquer relação possível entre dois semelhantes. Sim, mas ao mesmo tempo existe, de outra forma, uma maior distância entre os participantes. Estamos nos aproximando - bem, não vou dizer "o Outro", pois eu suspeito que isso não tem sentido, mas sim ao Inimaginável e Absolutamente Outro. Devemos ter - eu espero que às vezes tenhamos - simultaneamente consciência da proximidade mais próxima e da distância infinita. Você torna as coisas muito bem ajustadas e confiantes. Sua analogia amorosa precisa ser complementada por "eu caí aos Seus pés como um morto".
Eu acho que o ambiente de Baixa Igreja em que eu cresci contribuía a estar muito cômodo e tranquilo em Sião. Meu avô, me disseram, costumava dizer que "esperava ter conversas muito interessantes com St. Paulo quando ele chegasse ao céu". Dois cavalheiros clericais falando com tranquilidade em um clube! Nunca passou por sua mente a ideia de que um encontro com São Paulo poderia ser uma experiência esmagadora mesmo para um clérigo evangélico de boa família. Mas quando Dante viu os grandes apóstolos no céu o impressionaram como montanhas.
Há muito a dizer contra devoções aos santos; mas, pelo menos eles continuam lembrando que somos pessoas muito pequenas em comparação com eles. Quanto mais pequenos não somos ante ao seu Mestre?
Algumas orações formais, prontas, me servem de corretivo para - bem, vamos chamá-la assim – desfaçatez[2]. Elas mantêm um lado do paradoxo vivo. Claro que é apenas um lado. Seria melhor não ser reverente, do que ter uma reverência que negasse a proximidade.




[1] “Clerical one-upmanship”. Algo como um sentimento de superioridade.
[2] “Cheek”. Possui várias acepções informais em inglês. Talvez pudesse ser traduzida também como cinismo, impudor, descaramento.

Original disponível em: <gutenberg.ca/ebooks/lewiscs-letterstomalcolm/lewiscs-letterstomalcolm-00-h.html>. Acesso em 5 mar. 2018.

Usamos também a tradução espanhola de José Luis Del Barco.
LEWIS, C. S. Si Diós no Escuchase: Cartas a Malcolm. Trad. de José Luis Del Barco. Madrid: Ediciones RIALP S. A., 2004.

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