DETERMINAÇÃO E DEPENDÊNCIA[1]
Obedecerei às tuas leis; peço-te que não me abandones nunca (Sl 119.8, NTLH).
C. S. Peirce (1838-1914), filósofo norte-americano, no texto “Ideais de Conduta”[2], traçou três aspectos da passagem da reflexão sobre os ideais de conduta para uma ação efetiva. Essa reflexão afeta, primeiramente, a sua disposição. A disposição é a inclinação, a propensão, o desejo, que surge no agente, que o leva a considerar como agirá. O passo seguinte da reflexão é a resolução. A resolução é o plano, o diagrama ou imagem mental desse como agirá. A disposição e a resolução ainda não influenciam necessariamente a conduta. Por isso, o próximo passo é a determinação. Como escreve o filósofo, “através de um processo similar àquele de imprimir uma lição sobre sua memória, cujo resultado é que a resolução, ou fórmula mental, é convertida em uma determinação, pela qual eu quero dizer uma ação realmente eficiente”. Resumindo: primeiro, o desejo de agir sob um determinado ideal, segundo, o plano que delineia como agiremos, e terceiro, a ação propriamente dita.
Esse processo, é claro, não é tão simples assim. Boa parte dele é inconsciente. Mas ele nos ajuda entender o que o salmista está dizendo no parágrafo inteiro (vv. 1-8). Primeiro, o desejo de agir conforme o ideal da vontade de Deus, revelado em sua palavra, é afirmado no versículo 5. “Como desejo obedecer às tuas ordens e cumpri-las com fidelidade!” (NTLH). Segundo, o plano que delineia “como agir” é sublinhado nos versos 1 a 4 e 6 e 7: “Felizes são os que não podem ser acusados de nada, que vivem de acordo com a lei de Deus, o SENHOR! Felizes os que guardam os mandamentos de Deus e lhe obedecem de todo o coração! Felizes os que não praticam o mal, os que andam nos caminhos de Deus! Tu, ó Deus, nos deste as tuas leis e mandaste que as cumpríssemos fielmente. Se eu der atenção a todos os teus mandamentos, não passarei vergonha. Com um coração sincero eu te louvarei à medida que for aprendendo os teus justos ensinamentos” (NTLH). Terceiro, a determinação de agir efetivamente segundo o ideal: “Obedecerei às tuas leis; peço-te que não me abandones nunca” (Sl 119.8, NTLH).
Mas, podemos atingir esse ideal por simples atos de vontade? A resposta é não. Por essa razão ele continua a oração iniciada no verso 5. Sua petição é para que Deus não o abandone. Aqui está explícito que YHWH pode ser o agente do abandono, que tem implicações devastadoras, como a morte[3]. Mas, qual é a natureza desse abandono? Calvino[4] entende esse abandono como as provações da nossa fé. O argumento do suplicante seria, então, que manter as leis de YHWH fornece uma base para que isso nunca aconteça, ou não aconteça “completamente”, que YHWH não deveria abandona-lo excessivamente ou seriamente[5]. Assim, Calvino parafraseou o versículo na forma de uma oração: “Ó Deus, tu vês o meu estado de espírito; e, sendo eu apenas um homem, não ocultes de mim, por tempo demasiadamente longo, os sinais de teu favor, nem demores a ajudar-me, por mais tempo do que sou capaz de suportar, para que, imaginando estar esquecido de ti, não me afaste do rumo certo da piedade”[6].
Desejar, planejar e agir são os passos dados na direção do ideal de conduta delineado no primeiro parágrafo do Salmo 119. Determinação e dependência são os termos que sublinham as duas partes do texto em epígrafe. Ao mesmo tempo em que assume o compromisso e responsabilidade de viver segundo a Lei de Deus, o salmista reconhece que sem a ajuda da graça divina não iria muito longe nesse caminho. Para encerrar a nossa reflexão, julgamos oportuno citar Barnes, para quem a “sua confiança (a do salmista) de que ele guardaria os mandamentos de Deus baseava-se na oração de que Deus não o deixaria. Não há outro motivo de persuasão para podermos guardar os mandamentos de Deus do que aquele que repousa na crença e na esperança de que Ele não nos deixará”[7].
[1] SPURGEON, C. H. Salmo 119: o alfabeto de ouro. Trad. Valer Graciano Martins. São Paulo: Edições Parakletos, 2001. p. 23. Spurgeon fala de Resolução e Dependência. Aqui preferimos o termo “determinação” em vez de “resolução”.
[2] PEIRCE, C. S. Ideais of conduct. Trad. e introd. de Ivo Assad Ibri. Trans/Form/Ação, São Paulo, 8:79-95, 1985.
[3] GOLDINGAY, John. Baker commentary on the Old Testament: wisdom and psalms. Michigan: Baker Academic, 2013.
[4] CALVINO, João. Salmos. Vol. 4. Trad. Valer Graciano Martins. São Paulo: Editora Fiel, 2013. (Ebook).
[5] GOLDINGAY, 2013.
[6] CALVINO, 2013.
[7] BARNES, Albert. Notes on the Whole Bible. Disponível em: <www.studylight.org/commentaries/bnb/psalms-119.html>. Acesso em: 02 abr. 18.
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