terça-feira, 3 de abril de 2018

CARTAS A MALCOLM: PRINCIPALMENTE SOBRE ORAÇÃO - CAPÍTULO 1

Traduzido por Jânio da Cunha Bastos

Sou completamente favorável à sua ideia de que devemos voltar ao nosso antigo plano de ter um assunto mais ou menos definido - um agendum - para nossas cartas. Quando nos separamos pela última vez, a correspondência languidesceu por falta disso. Quão bem fizemos em nossos dias de graduação com nossas intermináveis cartas sobre a República, e metros (versos) clássicos, e o que era então a "nova" psicologia! Nada faz um amigo ausente tão presente como um desacordo. 

A oração, que é o tema que você sugere, é um assunto que me preocupa sobremaneira. Quero dizer, oração privada. Se você está pensando em oração corporativa, então não vou participar. Não há assunto no mundo (sempre exceto o esporte) sobre o qual tenho menos a dizer do que sobre a liturgia. E o quase nada que tenho a dizer pode também ser descartado nesta carta. 

Eu acho que o nosso dever como leigos é receber o que nos é dado e contentarmo-nos com ele. E acho que isso seria muito mais fácil se o que nos foi dado fosse o mesmo sempre e em todos os lugares. 

A julgar por seus hábitos, muito poucos clérigos anglicanos têm este ponto de vista. Parece como se eles acreditassem que as pessoas podem ser atraídas à igreja por animações, claridade, vagarosidade, abreviações, simplificações e complicações incessantes do culto. E é provavelmente verdade que um clérigo novo e perspicaz geralmente poderá formar dentro de sua paróquia uma minoria que seja a favor de suas inovações. A maioria, eu acredito, nunca está. Aqueles que permanecem - muitos abandonam a igreja completamente - simplesmente suportam. 

Isso é simplesmente porque a maioria está aferrada à tradição? Eu acho que não. Eles têm uma boa razão para o seu conservadorismo. A novidade, simplesmente como tal, pode ter apenas um valor de entretenimento. E eles não vão à igreja para serem entretidos. Eles vão usar o culto ou, se você preferir, para pô-lo em prática (traz a ideia de representar). Todo culto é uma estrutura de atos e palavras através dos quais recebemos um sacramento, ou nos arrependemos, ou suplicamos, ou adoramos. E isso nos capacita a fazer todas essas coisas da melhor maneira possível - se você gostar mais, "funciona" melhor - quando, por uma longa familiaridade, não precisamos pensar nele (no culto). Enquanto você tiver que observar e contar os passos, você ainda não está dançando, mas apenas aprendendo a dançar. Um bom sapato é aquele que você não nota. Uma boa leitura torna-se possível quando você não precisa pensar conscientemente sobre os olhos, nem sobre a luz, nem sobre a impressão, nem sobre as letras (ou ortografia). O serviço perfeito da igreja seria aquele do qual quase não estivéssemos conscientes; nossa atenção estaria em Deus. 

Mas todas as novidades evitam isso. Ela fixa nossa atenção no próprio culto; e pensar em adoração é uma coisa diferente de adorar. A pergunta importante sobre o Graal era esta: "para que serve? É uma louca idolatria que engrandece mais ao culto do que o deus". 

Uma coisa ainda pior pode acontecer. A novidade pode fazer com que nossa atenção não esteja nem mesmo no culto, mas no celebrante. Você sabe o que eu quero dizer. Se tentar evitá-lo, a pergunta: "o que diabos ele está fazendo agora?", irá lhe incomodar. Isso destrói a devoção que alguém tenha. Há realmente alguma desculpa para o homem que disse: "Eu gostaria que eles se lembrassem de que a tarefa dada a Pedro foi: ‘apascenta as minhas ovelhas’, não ‘faça experimentos com meus ratos’, nem tampouco ‘ensine novos truques aos meus cães’". 

Assim, toda a minha posição litúrgica se resume a uma súplica em favor da permanência e da uniformidade. Posso praticar quase qualquer tipo de culto com a única condição de que esteja fixo. Mas, se cada forma me é arrancada, no preciso momento em que estou começando a me familiarizar com elas, então nunca posso fazer nenhum progresso na cerimônia (arte) do culto. Não me dá a chance de adquirir o hábito - habito dell' arte. 

Pode ser que algumas variações que me parecem meramente questões de gosto realmente envolvam graves diferenças doutrinárias. Mas, não ocorrerá o mesmo com todos? Pois, se as diferenças doutrinárias importantes são tão numerosas quanto as variações na prática, teremos que concluir que não existe tal coisa como a Igreja da Inglaterra. E de qualquer forma, a Inquietação Litúrgica não é um fenômeno puramente anglicano. Ouvi dizer que os católicos romanos se queixam disso também. 

E isso me traz de volta ao meu ponto de partida. Nossa tarefa, como leigos, é simplesmente continuar com firmeza e contentar-nos com isso. Qualquer tendência ou preferência apaixonada por um tipo de culto deve ser considerada simplesmente como uma tentação. Igrejas partidárias são o meu bête noir (pesadelo). E se os evitarmos, não realizamos uma tarefa muito útil? Os pastores se vão, "cada um à sua própria ocupação" e desaparecem por diversos pontos do horizonte. Se as ovelhas se agasalharem pacientemente juntas e continuarem balando, não poderia ocorrer que finalmente façam voltar os pastores? (As vitórias inglesas às vezes não foram conquistadas pelas tropas apesar dos generais?). 

Quanto às palavras do culto - a liturgia no sentido mais estreito -, a questão é bastante diferente. Se você tiver uma liturgia vernácula, deve ser uma liturgia em mudança; caso contrário, será, finalmente, conhecida apenas por nome. O ideal do "inglês eterno" é um puro absurdo. Nenhuma língua viva pode ser eterna. Você também poderia pedir um rio imóvel. 

Eu acho que teria sido melhor, se fosse possível, que as mudanças necessárias deveriam ter ocorrido gradualmente e (para a maioria das pessoas) imperceptivelmente; um pouco aqui e um pouco lá; uma palavra obsoleta substituída em um século - como a mudança gradual da ortografia em sucessivas edições de Shakespeare. Como as coisas estão, devemos nos adaptar, se podemos conciliar assim mesmo ao governo, a um novo Livro (de oração comum). 

Se estivéssemos - agradeço à minha boa estrela que não estou - em posição de dar conselhos aos seus autores, você teria algum conselho para dar? O meu não poderia ultrapassar os cuidados inúteis: "Tome cuidado. É tão fácil quebrar ovos sem fazer omeletes". 

A liturgia é um dos poucos elementos de unidade restantes na nossa Igreja, horrivelmente dividida. O bem a ser feito mediante a revisão precisa ser muito grande e muito claro antes de jogar esse fora. Você pode imaginar qualquer novo Livro que não seja uma fonte de novo cisma? 

A maioria dos que insistem em uma revisão parecem desejar que ela sirva a dois propósitos: o de modernizar a linguagem no interesse da inteligibilidade e a melhoria doutrinária. As duas operações - cada uma dolorosa e cada uma perigosa - devem ser realizadas ao mesmo tempo? Será que o paciente sobreviverá? Quais são as doutrinas sobre as quais há acordo que devem ser incorporadas no novo Livro e quanto tempo o acordo durará? Pergunto com trepidação porque li um homem, no outro dia, que parecia desejar que tudo no velho Livro de Orações que fosse incompatível com o freudismo ortodoxo deveria ser excluído. 

Para quem devemos prover a revisão da linguagem? Um pároco rural conhecido meu perguntou ao seu sacristão o que ele entendia por indiferentemente na frase "administrar verdadeiramente e de maneira indiferente a justiça". O homem respondeu: "Isso significa não fazer distinção entre um sujeito e outro". "E o que isso significaria se dissesse imparcialmente?", Perguntou o pároco. "Não sei. Nunca ouvi essa palavra", disse o sacristão. Aqui, você vê, temos uma mudança destinada a facilitar as coisas. Mas, não consegue, nem no caso das pessoas cultas, que compreendem indiferentemente, nem no dos inteiramente incultos, que não entendem o significado de imparcialmente. Isso ajuda apenas uma área média da congregação, que possivelmente nem é a maioria. Esperemos que os revisores se preparem para o seu trabalho através de um estudo empírico prolongado sobre o discurso popular como é de fato, não como nós (a priori) supomos que seja. Quantos estudiosos sabem (o que descobri por acidente) que quando as pessoas incultas dizem impessoal, às vezes, querem dizer incorpóreo

Quais são as expressões arcaicas, mas não ininteligíveis? ("Sede corajosos"). Me parece que as pessoas reagem ao arcaísmo de maneira diversa. A alguns lhes provoca hostilidade: converte em irreal o que se diz. Para outros, não necessariamente os mais educados, é altamente numinoso e uma ajuda real à devoção. Não podemos agradar a ambos. 

Eu sei que deve haver mudanças. Mas esse é o momento certo? Dois sinais do momento certo me ocorrem. Um seria uma unidade entre todos nós que permitisse à Igreja - não a um partido momentaneamente triunfante - falar sobre o novo trabalho com uma voz unida. O outro seria a presença manifesta, em algum lugar da Igreja, do talento especificamente literário necessário para compor uma boa oração. A prosa precisa ser não só muito boa, mas muito boa de uma maneira muito especial, para fazer frente à leitura reiterada em voz alta. Cranmer pode ter seus defeitos como teólogo, mas, como estilista, ele supera todos os modernos e muitos de seus predecessores. Não aprecio nenhum desses sinais no momento. 

No entanto, todos queremos “mexer”. Até mesmo eu gostaria de ver retirada do ofertório as palavras "Que tua luz brilhe sobre os homens". Soa, nesse contexto, como uma exortação para dar a esmola para que seja visto pelos homens. 

Eu tinha a intenção de continuar a carta ocupando-me do que você disse sobre as cartas de Rose Macaulay, mas isso deve aguardar até a próxima semana. 

Original disponível em: <gutenberg.ca/ebooks/lewiscs-letterstomalcolm/lewiscs-letterstomalcolm-00-h.html>. Acesso em 5 mar. 2018.

Usamos também a tradução espanhola de José Luis Del Barco.
LEWIS, C. S. Si Diós no Escuchase: Cartas a Malcolm. Trad. de José Luis Del Barco. Madrid: Ediciones RIALP S. A., 2004.

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