quarta-feira, 21 de março de 2018

Reflexões no Salmo 119

DA ORAÇÃO AO LOUVOR 

Com um coração sincero eu te louvarei à medida que for aprendendo os teus justos ensinamentos. (Sl 119.7, NHTL) 

Eu vou confessar-Te com retidão de coração enquanto aprendo tuas decisões fiéis. (Tradução de GOLDINGAY). 

Confessar nem sempre significa confessar pecados. No texto bíblico há três sentidos básicos ligados à raiz dessa palavra. Primeiro, era empregada para indicar o reconhecimento ou a confissão de pecados, tanto no âmbito individual quanto nacional. Segundo, usava-se para expressar a confissão pública dos atributos e obras de Deus. Terceiro, indicava, também, o louvor de um ser humano por outro. Assim, com relação a Deus, “louvor é uma confissão ou afirmação de quem Deus é e do que faz”[1]. Desse modo, aliando à sua oração o louvor (NVI) ou confissão (GOLDINGAY) ou ação de graças (ARA), o salmista reconhece que o Senhor tem sido benevolente com ele. Testemunha à comunidade da aliança que obedecer ao Senhor é o caminho da prosperidade e honra. Da oração ao louvor, ou o louvor na oração, ou, ainda, a oração com louvor, seja como for, temos aqui o reconhecimento que somo o que somos pela graça maravilhosa de Deus, que é o centro da nossa adoração. 

Para facilitar nossa compreensão do versículo façamos as seguintes perguntas: Confessar a quem? Confessar o que? Confessar com que atitude? Confessar com qual disposição? Primeiramente, o salmista confessa ao Senhor. Nos Salmos, o reconhecimento do que Deus é passa pela contemplação daquilo que Ele faz. São duas coisas que vão juntas (por exemplo, ver os Salmos 112 e 150). O que ele confessa aqui, ao contemplar sua própria vida à luz daquilo que Deus tem feito nele e através dele, portanto, é a benevolência do Deus da aliança, que manifesta suas obras na vida do seu povo e daquele que lhe é obediente. 

A atitude com que o faz é digna de nota. Ele louva a Deus de modo sincero e íntegro. Seu coração, que é o centro das emoções, volições e pensamentos, está cheio da lei de Deus, que atua nele como um purgante. Se a fonte está limpa, é claro que ela vai jorrar água limpa. Se a fonte do comportamento é o coração, não poderíamos esperar de alguém cuja vida está limpa pela Palavra outra coisa que um louvor sincero, efusivo e efetivo. 

Por fim, o salmista apresenta uma disposição lúcida ao aprendizado. O seu coração não está cheio apenas de sinceridade, mas também de humildade. Albert Barnes expressou isso reconhecendo que “quanto mais conhecemos a Deus, mais nós veremos nele para louvar. Quanto maior o nosso conhecimento e experiência, mais nossos corações estarão dispostos a ampliar seu Nome. Esta observação deve se estender a tudo o que há em Deus para ser aprendido; e como isso é infinito, então haverá ocasião para louvores renovados e mais elevados para toda a eternidade”[2]

Conhecer a Deus passa necessariamente pelo o que Ele disse sobre si mesmo. Os justos juízos de Deus, que o salmista quer aprender mais e mais, são aquelas "jurisprudências" que constituem a base do sistema jurídico de Israel. No Salmo 119, a palavra "leis" geralmente denota a revelação dada pelo Juiz Supremo, o próprio Deus. Ele é o Grande Juiz, e os veredictos proferidos por ele são autoritativos. Por isso, a consequência natural é que “temos que ouvir e aprender a descobrir as decisões autorizadas que o Senhor fez sobre a vida que expõe a natureza da vida fiel em relação a Deus e ao outro”[3]. Nos guiamos na vida pelo GPS da vontade de Deus. 

Que confessemos com entusiasmo o que Deus é e o que ele faz. Que reconheçamos que somos o que somos pela sua graça. Que humildemente procuremos conhecer a sua vontade revelada na sua santa Palavra, nossa única regra de conduta e fé. Que nos alegremos por saber que “esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17:3, NVI). "Quem se gloriar, glorie-se no Senhor" (1 Co 1.31, NVI). 

Referências Bibliográficas

1 ARCHER JR. Gleason L.; HARRIS, R. Laird; WALTKE. Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. pp. 593-6. 

[2] BARNES, Albert. Notes on the Whole Bible. Disponível em: www.studylight.org/commentaries/bnb/psalms-119.html. Acesso em: 21 mar. 18. 

[3] GOLDINGAY, John. Baker commentary on the Old Testament: wisdom and psalms. Michigan: Baker Academic, 2013.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Reflexões no Salmo 119


NÃO ME ENVERGONHAREI
Então, não me envergonharei quando comparar minha vida com os teus mandamentos (Sl 119.6, NTV).
Fonte: Google Imagens

No mundo antigo, honra e vergonha são dois valores fundamentais nas culturas tradicionais que viviam em torno da bacia do Mediterrâneo. Ambos os valores evocam a ideia de uma convenção ou padrão socialmente estabelecido a partir do qual uma comunidade julga a conduta individual dos seus membros, considerando-os bem-aventurados ou desafortunados na medida da incorporação e adequação ou não a esse padrão[1]. No caso da comunidade da antiga aliança, o padrão não é uma convenção, mas uma revelação da vontade do grande Deus de Israel, que estabeleceu sua aliança com o seu povo. Nesses termos, uma pessoa é honrada quando se conduz nos termos da aliança, conformando sua vida às exigências nela contidas. Essa é a razão porque o salmo começa com o ideal, com o padrão. “Como são felizes os que andam em caminhos irrepreensíveis, que vivem conforme a lei do Senhor! Como são felizes os que obedecem aos seus estatutos e de todo o coração o buscam!” (Sl 119.1,2, NVI). A paráfrase da Bíblia Viva, do presente versículo, capta o sentido: “fazendo isso, eu sei que ninguém poderá me acusar de coisa alguma, porque dou o devido valor a todas as tuas regras de vida”. “Obediência gera prosperidade e, portanto, honra; a desobediência gera problemas e, portanto, é uma vergonha”[2].
            Nos termos da nova aliança, Tiago, o irmão do Senhor, afirma, por meio de uma metáfora, que a Palavra de Deus é um espelho. Quando nos vemos refletidos nela, não é meramente o que somos que ela nos mostra, mas o que deveríamos ser. “Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando-se a si mesmos. Aquele que ouve a palavra, mas não a põe em prática, é semelhante a um homem que olha a sua face num espelho e, depois de olhar para si mesmo, sai e logo esquece a sua aparência. Mas o homem que observa atentamente a lei perfeita que traz a liberdade, e persevera na prática dessa lei, não esquecendo o que ouviu mas praticando-o, será feliz naquilo que fizer (Tg 1.22-25, NVI). Perceba que Tiago está comparando os efeitos práticos da Palavra de Deus na conduta dos que se encontram com ela. Esquecer e perseverar são as palavras-chave. Na vida de alguns, os efeitos dela são passageiros. Nenhuma mudança real nas ações é concretizada. Para outros, entretanto, aqueles que perseveram em obedecê-la, evidenciam em suas ações as mudanças promovidas por essa Palavra. Honra e vergonha são contrastadas pelas ações que atestam respeito ou desprezo pela revelação de Deus. A obediência gera bem-aventurança.
            Entretanto, não podemos esquecer que na nova aliança o nosso ideal ou padrão encarnou-se, tornou-se homem. Jesus, segundo Mateus, é o cumprimento de todas as sombras, tipos e símbolos da Lei. Tudo converge para Ele. “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5.20, ARA). Não por acaso João afirma que “aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou. Jesus é o homem ideal a partir do qual todos os que estão nele estão sendo moldados. Se na antiga aliança o legalismo era um espectro quase sempre presente na vida dos que queriam se adequar ao ideal da aliança, por gerar a falsa impressão que tudo se resume a uma questão de mérito, na nova, o imperativo “andar como ele andou” é acompanhado do indicativo de que o próprio Deus está trabalhando em nós para que esse ideal seja atingido um dia. Para Paulo, “e todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3:18, ARA). O Espírito de Deus é o artesão que está imprimindo em nós a imagem de Cristo. Que não nos envergonhemos de dizer que ainda somos pecadores, aquém do ideal de Deus. Mas, glorie-se no fato que somos pecadores a caminho da bem-aventurança eterna, de sermos semelhantes ao Filho de Deus.
                   Jânio da Cunha Bastos


[1] GOLDINGAY, John. Baker commentary on the Old Testament: wisdom and psalms. Michigan: Baker Academic, 2013.

[2] ENNS, Peter; LONGMAN III, Tremper (Ed). Dictionary of the Old Testament: wisdom, poetry and writings. Illinois: IVP Academic, 2008. pp. 287-300.

terça-feira, 6 de março de 2018

Reflexões no Salmo 119


COMO DESEJO CUMPRIR TEUS MANDAMENTOS! 

Como desejo obedecer às tuas ordens e cumpri-las com fidelidade! (Sl 119:5, BÍBLIA versão NTLH)















C. S. Peirce (1838-1914), filósofo norte-americano original na abordagem da filosofia da linguagem, no texto “Ideais de Conduta”[1], fala de três modos nos quais os ideais de conduta insinuam-se. Em primeiro lugar, certos tipos de conduta têm uma qualidade estética. Aquele ou aquela que a contempla considera-a bela. Em segundo lugar, o homem se esforça por montar uma imagem ou diagrama no qual seus ideais tenham coerência para a ação. Em terceiro lugar, ele avalia quais consequências acarretariam seus ideais. Essas considerações de Peirce nos ajudam a compreender as palavras do salmista de modo cristalino. Nos versos anteriores ele contempla a beleza da conduta guiada pela lei de Deus. Essa conduta produz bem-aventurança. A imagem da vida feliz é a obediência à lei de Deus. E por fim, ele avalia essa conduta e julga que ela é elevada demais para ele conseguir atingi-la. E quando chega a essa conclusão ele ora. 

Uma coisa é contemplar a beleza do ideal de conduta da Bíblia, outra bem diferente é atingi-lo por si mesmo. Paulo expressou essa angústia em Romanos 7. “Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo” (Rm 7:18-19, NVI). Quando tentamos atingir o ideal de conduta bíblico com a finalidade de tornar Deus nosso devedor, ou seja, pagar a nossa obediência com justiça, fracassamos. “O salmista, sensível à sua própria incapacidade, como é todo homem bom, para manter os mandamentos de Deus, ora pela graça, orientação e assistência nela; que os caminhos de sua mente, seus pensamentos, afeições e inclinações possam ser direcionados para a observância dos preceitos divinos” (GIL). E como Deus faz isso? Somente pelo novo nascimento, implantando sua própria vida em nós. “Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos” (Ef 2.10, NVI). 

Não estamos debaixo da lei, mas da graça. Sob a graça, a oração do salmista assume uma nova perspectiva. É o anseio de todo servo e serva de Deus cumprir sua lei, pois expressa a sua vontade. Mas para eles, a lei é o horizonte a nossa frente, o padrão para o qual Deus está nos conduzindo. É isso que ocorrerá conosco quando Ele terminar a sua obra em nós (Fl 1.6). Seremos santos como Ele é santo. Seremos semelhantes à imagem de seu Filho Jesus. Até lá, que oremos as palavras do salmista e de Paulo, que humildemente reconhece “não que eu já tenha obtido tudo isso ou tenha sido aperfeiçoado, mas prossigo para alcançá-lo, pois para isso também fui alcançado por Cristo Jesus. Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado, mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus” (Fl 3.12-14). O que hoje é apenas um ideal, na eternidade será realidade. 

Jânio da Cunha Bastos



[1] PEIRCE, C. S. Ideais of conduct. Trad . e introd . de Ivo Assad Ibri. Trans/Forml Ação, São Paulo, 8: 79-95, 1985.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Reflexões no Salmo 119

OBEDIÊNCIA EM DEMASIA

Tu ordenaste os teus mandamentos, para que diligentemente os observássemos. (Sl 119:4)

O Sacrifício de Isaac, Laurent de LaHire, 1650

          

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) propôs que o homem moderno precisa ir além de si mesmo, inverter e criar valores. Isso significa assumir o papel de legislar, tornar-se senhor da sua própria existência, quebrar os grilhões de qualquer forma de metafísica. Nietzsche, entretanto, não foi o “inventor” dessa filosofia. Satanás, no jardim do Éden, já havia proposto sermos legisladores da nossa própria existência. “Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal" (Gn 3:5). Essa é a atitude do homem em rebelião contra Deus, amante de si mesmo (2 Tm 3.2), cujo “pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações insensatos se obscureceram” (Rm 1.21). 

Dissidente desse pensamento, o salmista acredita que há um Legislador supremo, que tem esse direito por ser o Criador, Preservador, Redentor e Rei de tudo (GIL). Seu prazer em Deus leva-o a regozijar-se na lei de Deus, que é santa, justa e boa (Rm 7.12), e que emana pessoalmente dEle. Sua ética é normativa. O modo de vida de Israel (e do povo de Deus em geral) não envolve fazer escolhas independentes, como se já fossemos adultos emancipados de nossos pais. O caminho para a vida é o caminho da obediência (Dt 30.15,16). “Deus não nos ordenou ser diligentes em fazer preceitos, mas em guardá-los. Há quem põe jugo em seu próprio pescoço e faz algemas e normas para outros; mas uma diretriz sábia se satisfaz com as normas da Santa Escritura, em relação a todos os homens e em todos os aspectos” (SPURGEON). 

O chamado ao discipulado sob o evangelho permanece sendo um chamado à obediência (Jo 14.23,24; 15.10,14). Jesus disse aos judeus que haviam crido nele (e a nós), “vocês são verdadeiramente meus seguidores se viverem como Eu digo” (BÍBLIA VIVA). É claro que não conseguiremos cumprir perfeitamente a lei de Deus nesta existência decaída (Rm 7). Por isso, faremos bem em orar as palavras de Paulo aos Filipenses: “Assim, meus amados, como sempre vocês obedeceram, não apenas em minha presença, porém muito mais agora na minha ausência, ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor, pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele” (Fp 2.12-13). 

Jânio da Cunha Bastos 



sexta-feira, 2 de março de 2018

Reflexões no Salmo 119



COMPROMISSO TOTAL COM A PALAVRA DE DEUS 

Felizes aqueles que se esforçam para obedecer de todo o coração à vontade revelada de Deus; sem dúvida alguma, eles não praticam injustiças e andam sempre pelo caminho do Senhor. Sl 119:2-3. (BÍBLIA VIVA)

            

A segunda bem aventurança é um desdobramento da primeira, construída a partir do paralelismo característico da poesia hebraica. Aqui, a fonte do comportamento é declarada. A dialética do exterior e interior é afirmada. O comportamento sem atitude não seria suficiente. A atitude sem comportamento não seria suficiente. Na verdade, o salmo assume que não se pode ter um comportamento caracterizado pela integridade sem a atitude correta do coração; e não se pode ter a atitude correta do coração sem que isso seja expresso externamente. 

Integridade é estar inteiro, uno, no esforço de seguir o ensinamento do Senhor. O contrário disso seria hipocrisia, que é um estado de espírito e vida em que uma aparência externa da verdade ou da retidão encobre a mentira ou a maldade escondida. Por isso Jesus disse que o que contamina o homem não é o que entra, mas o que sai, pois a boca fala do que o coração está cheio. Do bom tesouro do nosso coração tiramos coisas boas ou más. Essa é a razão porque de tudo o que se deve guardar devemos montar guarda no nosso coração, já que dele procedem as saídas da vida. 

Em outras palavras, é feliz aquele ou aquela que se esforça por ter um compromisso total, incondicional com a Palavra de Deus. Que a utiliza como guia nos atos da vida cotidiana, onde temos que enfrentar os desafios de aplicar a lei de Deus a situações embaraçosas. É claro que isso não significa que o crente não peca mais. O salmista não está dizendo que somos perfeitos. João nos lembra que aquele que diz que não tem pecado é mentiroso. O que se afirma é o compromisso com a verdade revelada de Deus, a humilde submissão aos seus mandamentos. Portanto, que o nosso compromisso com a Palavra de Deus seja total. 

Jânio da Cunha Bastos

COMO ERAM AS MANIFESTAÇÕES DO ESPÍRITO SANTO NO ANTIGO E NO NOVO TESTAMENTO?

O Evangelho de João relata uma passagem da vida de Jesus que leva algumas pessoas a entender que o Espírito Santo não agia entre o povo d...