sexta-feira, 9 de março de 2018

Reflexões no Salmo 119


NÃO ME ENVERGONHAREI
Então, não me envergonharei quando comparar minha vida com os teus mandamentos (Sl 119.6, NTV).
Fonte: Google Imagens

No mundo antigo, honra e vergonha são dois valores fundamentais nas culturas tradicionais que viviam em torno da bacia do Mediterrâneo. Ambos os valores evocam a ideia de uma convenção ou padrão socialmente estabelecido a partir do qual uma comunidade julga a conduta individual dos seus membros, considerando-os bem-aventurados ou desafortunados na medida da incorporação e adequação ou não a esse padrão[1]. No caso da comunidade da antiga aliança, o padrão não é uma convenção, mas uma revelação da vontade do grande Deus de Israel, que estabeleceu sua aliança com o seu povo. Nesses termos, uma pessoa é honrada quando se conduz nos termos da aliança, conformando sua vida às exigências nela contidas. Essa é a razão porque o salmo começa com o ideal, com o padrão. “Como são felizes os que andam em caminhos irrepreensíveis, que vivem conforme a lei do Senhor! Como são felizes os que obedecem aos seus estatutos e de todo o coração o buscam!” (Sl 119.1,2, NVI). A paráfrase da Bíblia Viva, do presente versículo, capta o sentido: “fazendo isso, eu sei que ninguém poderá me acusar de coisa alguma, porque dou o devido valor a todas as tuas regras de vida”. “Obediência gera prosperidade e, portanto, honra; a desobediência gera problemas e, portanto, é uma vergonha”[2].
            Nos termos da nova aliança, Tiago, o irmão do Senhor, afirma, por meio de uma metáfora, que a Palavra de Deus é um espelho. Quando nos vemos refletidos nela, não é meramente o que somos que ela nos mostra, mas o que deveríamos ser. “Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando-se a si mesmos. Aquele que ouve a palavra, mas não a põe em prática, é semelhante a um homem que olha a sua face num espelho e, depois de olhar para si mesmo, sai e logo esquece a sua aparência. Mas o homem que observa atentamente a lei perfeita que traz a liberdade, e persevera na prática dessa lei, não esquecendo o que ouviu mas praticando-o, será feliz naquilo que fizer (Tg 1.22-25, NVI). Perceba que Tiago está comparando os efeitos práticos da Palavra de Deus na conduta dos que se encontram com ela. Esquecer e perseverar são as palavras-chave. Na vida de alguns, os efeitos dela são passageiros. Nenhuma mudança real nas ações é concretizada. Para outros, entretanto, aqueles que perseveram em obedecê-la, evidenciam em suas ações as mudanças promovidas por essa Palavra. Honra e vergonha são contrastadas pelas ações que atestam respeito ou desprezo pela revelação de Deus. A obediência gera bem-aventurança.
            Entretanto, não podemos esquecer que na nova aliança o nosso ideal ou padrão encarnou-se, tornou-se homem. Jesus, segundo Mateus, é o cumprimento de todas as sombras, tipos e símbolos da Lei. Tudo converge para Ele. “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5.20, ARA). Não por acaso João afirma que “aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou. Jesus é o homem ideal a partir do qual todos os que estão nele estão sendo moldados. Se na antiga aliança o legalismo era um espectro quase sempre presente na vida dos que queriam se adequar ao ideal da aliança, por gerar a falsa impressão que tudo se resume a uma questão de mérito, na nova, o imperativo “andar como ele andou” é acompanhado do indicativo de que o próprio Deus está trabalhando em nós para que esse ideal seja atingido um dia. Para Paulo, “e todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3:18, ARA). O Espírito de Deus é o artesão que está imprimindo em nós a imagem de Cristo. Que não nos envergonhemos de dizer que ainda somos pecadores, aquém do ideal de Deus. Mas, glorie-se no fato que somos pecadores a caminho da bem-aventurança eterna, de sermos semelhantes ao Filho de Deus.
                   Jânio da Cunha Bastos


[1] GOLDINGAY, John. Baker commentary on the Old Testament: wisdom and psalms. Michigan: Baker Academic, 2013.

[2] ENNS, Peter; LONGMAN III, Tremper (Ed). Dictionary of the Old Testament: wisdom, poetry and writings. Illinois: IVP Academic, 2008. pp. 287-300.

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