NÃO
ME ENVERGONHAREI
Então, não me envergonharei quando comparar minha vida com os teus mandamentos (Sl 119.6, NTV).
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Fonte: Google Imagens |
No mundo antigo, honra e vergonha são dois valores
fundamentais nas culturas tradicionais que viviam em torno da bacia do
Mediterrâneo. Ambos os valores evocam a ideia de uma convenção ou padrão socialmente
estabelecido a partir do qual uma comunidade julga a conduta individual dos
seus membros, considerando-os bem-aventurados ou desafortunados na medida da incorporação
e adequação ou não a esse padrão[1]. No caso da comunidade da
antiga aliança, o padrão não é uma convenção, mas uma revelação da vontade do
grande Deus de Israel, que estabeleceu sua aliança com o seu povo. Nesses
termos, uma pessoa é honrada quando se conduz nos termos da aliança,
conformando sua vida às exigências nela contidas. Essa é a razão porque o salmo
começa com o ideal, com o padrão. “Como são felizes os que andam em caminhos irrepreensíveis, que vivem conforme
a lei do Senhor! Como são
felizes os que obedecem aos seus estatutos e de todo o coração o buscam!” (Sl 119.1,2, NVI). A paráfrase
da Bíblia Viva, do presente versículo, capta o sentido: “fazendo isso, eu sei que ninguém poderá me acusar de coisa alguma, porque dou o
devido valor a todas as tuas regras de vida”. “Obediência gera prosperidade e,
portanto, honra; a desobediência gera problemas e, portanto, é uma vergonha”[2].
Nos termos da nova aliança, Tiago, o irmão do Senhor, afirma, por meio
de uma metáfora, que a Palavra de Deus é um espelho. Quando nos vemos
refletidos nela, não é meramente o que somos que ela nos mostra, mas o que
deveríamos ser. “Sejam
praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando-se
a si mesmos. Aquele que ouve a
palavra, mas não a põe em prática, é semelhante a um
homem que olha a sua face num espelho e, depois de olhar para si mesmo, sai e logo
esquece a sua aparência. Mas o homem que observa atentamente a lei perfeita
que traz a liberdade, e persevera na prática
dessa lei, não esquecendo o que ouviu mas praticando-o, será feliz naquilo que
fizer” (Tg 1.22-25, NVI). Perceba
que Tiago está comparando os efeitos práticos da Palavra de Deus na conduta dos
que se encontram com ela. Esquecer e perseverar são as palavras-chave. Na vida
de alguns, os efeitos dela são passageiros. Nenhuma mudança real nas ações é
concretizada. Para outros, entretanto, aqueles que perseveram em obedecê-la, evidenciam
em suas ações as mudanças promovidas por essa Palavra. Honra e
vergonha são contrastadas pelas ações que atestam respeito ou desprezo pela
revelação de Deus. A obediência gera bem-aventurança.
Entretanto,
não podemos esquecer que na nova aliança o nosso ideal ou padrão encarnou-se,
tornou-se homem. Jesus, segundo Mateus, é o cumprimento de todas as sombras,
tipos e símbolos da Lei. Tudo converge para Ele. “Não
penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para
cumprir” (Mt
5.20, ARA). Não por
acaso João afirma que “aquele que diz que permanece nele, esse deve também
andar assim como ele andou”. Jesus é o homem ideal a partir do qual todos os que estão nele estão
sendo moldados. Se na antiga aliança o legalismo era um espectro quase sempre presente
na vida dos que queriam se adequar ao ideal da aliança, por gerar a falsa impressão
que tudo se resume a uma questão de mérito, na nova, o imperativo “andar como
ele andou” é acompanhado do indicativo de que o próprio Deus está trabalhando
em nós para que esse ideal seja atingido um dia. Para Paulo, “e todos nós, com
o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos
transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3:18, ARA). O Espírito de Deus é o artesão
que está imprimindo em nós a imagem de Cristo. Que não nos envergonhemos de dizer
que ainda somos pecadores, aquém do ideal de Deus. Mas, glorie-se no fato que somos
pecadores a caminho da bem-aventurança eterna, de sermos semelhantes ao Filho
de Deus.
Jânio
da Cunha Bastos
[1] GOLDINGAY, John. Baker commentary on the Old Testament: wisdom and psalms. Michigan: Baker Academic, 2013.
[2] ENNS, Peter; LONGMAN III, Tremper (Ed). Dictionary of the Old Testament: wisdom, poetry and writings. Illinois: IVP Academic, 2008. pp. 287-300.
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