sexta-feira, 17 de julho de 2015

CRISTO E SUA CRUZ

Por John Stott

O evangelho é boa nova de libertação. Foi este o tema do último capítulo. Mas isto, por si mesmo, é uma ênfase unilateral, pois o que o evangelho anuncia, de acordo com o Novo Testamento, não é só o que Cristo oferece às pessoas hoje, mas o que ele fez um dia para possibilitar essa oferta. O evangelho dos apóstolos con­cilia o passado com o presente, o "outrora" com o agora, o evento histórico com a experiência contemporânea. Ele declara não somente que Jesus salva, mas também que, para fazê-lo, ele morreu pelos nossos pecados e ressuscitou da morte. Se se proclamar o poder salvador, omitindo os eventos salvíficos, especialmente a cruz, então o que se pregou não foi o evangelho.

Neste capítulo iremos refletir sobre uma das maiores declarações de Paulo acerca da origem, conteúdo e poder do evangelho, e particularmente acerca da centralidade da cruz de Cristo.

Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de lin­guagem, ou de sabedoria. Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado. E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós. A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demons­tração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana; e, sim, no poder de Deus.[1]

Neste texto, essencialmente trinitário, destacam-se três grandes lições acerca da evangelização. Elas têm a ver com a Palavra de Deus, a cruz de Cristo e o poder do Espírito.

A Palavra de Deus

O evangelho é a verdade proveniente de Deus. Segundo Paulo, o que ele proclamou aos coríntios não foi "osten­tação de linguagem", ou seja, sabedoria humana ou a sabedoria do mundo,[2] mas a palavra de Deus ou a sabedoria de Deus, que aqui ele chama de "testemunho" (martyrion) ou "mistério" (mysterion). As palavras gregas são simi­lares e a evidência do manuscrito entre elas é perfeitamente equilibrada. Além do mais, ambas ocorrem dentro dos dois primeiros capítulos desta carta: martyrion pode ter relação com 1.6, enquanto que mysterion pode estar relacionada com 2.7. Qualquer que seja a leitura correta, o sentido é o mesmo, isto é, que a mensagem de Paulo veio de Deus. Se a palavra correta é "testemunho", então significa "a verdade confirmada de Deus"; se o certo é "mistério", então é "a verdade secreta de Deus" (BLH). Em todo caso, o evangelho do apóstolo é a verdade de Deus.

É aqui que deve começar toda evangelização de verdade. Nós não inventamos nossa mensagem. Não abordamos as pessoas com nossas próprias especulações humanas. Somos, isto sim, portadores da Palavra de Deus, encarregados do evangelho de Deus, mordomos dos segredos revelados de Deus.

Além disso, o que Paulo transmitia era compatível com sua mensagem. Ele não foi até os coríntios com "ostentação de linguagem" nem com "sabedoria" (versículo 1). Quanto ao conteúdo, ele abriu mão da orgulhosa sabedoria huma­na, submetendo-se humildemente, ao invés disso, à palavra de Deus acerca de Cristo (versículo 2). Quanto à mensagem, ele abriu mão da orgulhosa retórica humana para basear-se humildemente no poder do Espírito Santo (versículos 3 a 5). Como diz C. H. Hodge em seu comentário, ele não veio "nem como retórico nem como filósofo".[3]

Por favor, não me interpretem mal. Não existe aqui nenhuma tentativa de justificar um evangelho sem con­teúdo, nem tampouco um estilo sem forma. O que Paulo está abdicando aqui não é uma substância doutrinária, nem um argumento racional, mas somente a sabedoria e a retórica do mundo. Nós sabemos disso porque Lucas nos conta em Atos 18, como foi o ministério evangelístico do apóstolo em Corinto. Primeiro ele "discorria na sinagoga" todo sábado, "persuadindo tanto judeus como gregos" (versículo 4). Daí ele passou dezoito meses "ensinando entre eles a palavra de Deus" (versículo 11). Por isso ele pôde levar adiante o seu ministério de ensino em Corinto tentando "persuadir" as pessoas.[4] Ele não somente ensi­nava a verdade às pessoas, mas também convencia-as da verdade.

Portanto, quando convidamos as pessoas a aceitarem a Cristo, não temos nenhum direito de fechar, endurecer ou anular a mente delas. De maneira nenhuma. Deus as criou como seres racionais e espera que usem o seu raciocínio. Para dizer a verdade, elas nunca haverão de crer, a não ser que o Espírito as ilumine. Sem isso, todo argumento será infrutífero. "Mas", escreve Gresham Machen, "só porque o argumento é insuficiente, isto não significa que ele seja desnecessário. O que o Espírito Santo faz no novo nascimento não é tornar cristã uma pessoa, independente das evidências, mas, sim, dissipar a neblina dos seus olhos e capacitá-la a atentar para essas evidências."[5]

Assim, o evangelho é a verdade que vem de Deus e foi confiada a nós. Nossa responsabilidade é apresentá-la da forma mais clara, coerente e convincente possível e, assim como os apóstolos, argumentá-la com a maior persuasão possível. E em todo o tempo, ao fazê-lo, estaremos con­fiando que o Santo Espírito da verdade haverá de dissipar a ignorância das pessoas, superar seus preconceitos e convencê-las acerca de Cristo.

A cruz de Cristo

Chegamos agora ao versículo 2: "Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado." Tem gente que lê isto de forma errada, como se Paulo tivesse escrito "senão Jesus Cristo crucificado"; a conclusão é, então, que o seu único tema era a cruz. Mas o que Paulo escreveu mesmo (e que é coerente com a descrição de Lucas em Atos acerca de sua obra evangelística) foi que ele decidiu nada saber "senão Jesus Cristo" (sua mensagem centra­lizava-se neste) "e (especialmente, embora não exclusiva­mente) este crucificado". E o que dizer, então, sobre a ressurreição de Cristo? Esta com certeza tinha um lugar de grande importância na pregação dos apóstolos. Mas eles a entendiam e proclamavam, não como um evento isolado e independente, mas em relação com a cruz. Afinal de contas, a ressurreição não foi apenas uma sequela da morte de Jesus; ela foi a reversão da opinião humana a respeito dele e a vindicação pública do propósito divino na sua morte.

Agora dá para ver que Paulo, antes de chegar a Corinto, tomou a decisão de concentrar sua pregação em Cristo, e especialmente na cruz. Eu "decidi" (ERAB), escreveu ele, "me propus" (ERC), "resolvi" (BLH) fazê-lo. É esta decisão que precisamos analisar: por que ele precisou tomá-la?

A interpretação popular da situação é bem conhecida. Paulo chegou a Corinto vindo de Atenas. Seu sermão para os filósofos atenienses (diz a teoria) tinha sido um fiasco. Além de ter sido muito intelectual, Paulo não havia pregado o evangelho. Em vez de concentrar-se na cruz, tinha enfocado a criação. O resultado é que não houve nenhuma conversão. Assim, em seu caminho para Corinto, Paulo arrependeu-se do evangelho distorcido que havia pregado em Atenas e resolveu que, em Corinto, limitaria sua mensagem à cruz.

Eu confesso que a primeira vez que ouvi essa teoria, há muitos anos, ela me desceu goela abaixo com isca, anzol e tudo. Mas depois eu tive que rejeitá-la, pois vi que ela não resiste a uma análise mais profunda. Primeiro, porque a missão de Paulo em Atenas não foi um fracasso. Pelo contrário, "houve alguns homens que se agregaram a ele, e creram; entre eles estavam Dionísio, o areopagita, uma mulher chamada Dámaris e com eles outros mais".[6]Segundo, Lucas, em sua narrativa de Atos, não dá qualquer indício de que ele acha que o sermão de Paulo foi um equívoco; pelo contrário, ele o registra como um modelo da pregação dos apóstolos para os intelectuais gentios. Terceiro, é quase certo que Paulo pregou, sim, a cruz em Atenas, já que ele proclamou "Jesus e a ressurreição",[7] e não se pode pregar a ressurreição sem a morte que a precedeu. A verdade é que, por causa do seu público, composto de gentios, Paulo aproveitou a situação e começou com a idolatria e a criação, ao invés da Escritura veterotesta­mentária. Mas ele não parou ali. O sermão que Lucas registra deve ter durado apenas uns dois minutos; portan­to, Paulo deve ter elaborado consideravelmente esse esbo­ço. Quarto, Paulo não mudou realmente sua tática em Corinto. Assim como em Atenas, também em Corinto Lucas o descreve ainda argumentando, ensinando e persuadindo.[8] Mas, então, qual foi a decisão de Paulo? Por trás de toda resolução existe alguma indecisão anterior, uma situação em que varias opiniões se apresentam e nós somos obri­gados a escolher, optar por uma delas em detrimento das outras. É evidente, pois, que por detrás da decisão de Paulo de pregar somente a Cristo, e especialmente a cruz, jazia uma alternativa, ou mesmo uma tentação, ou de pregar a Cristo sem a cruz, ou de deixar definitivamente de anunciar a Cristo, pregando, ao invés disso, a sabedoria do mundo. Mas, então, por que isto teria sido uma tentação para Paulo enquanto ele viajava de Atenas para Corinto? Com toda certeza não foi por causa do seu suposto fracasso em Atenas, mas, sim, pelo temor da recepção que o aguardava em Corinto. Mas quem eram esses coríntios, para que Paulo estivesse tão intimidado e tão apreensivo ao abordá-los ("em fraqueza, temor e grande tremor", v. 3), e em relação aos quais ele deve ter achado necessário tomar uma firme resolução?

Ao indagarmos e respondermos estas questões, iremos desvendar também as principais objeções que se fazem hoje à mensagem de Cristo e sua cruz. Ou melhor, veremos por que nós mesmos precisamos tomar essa decisão hoje.

(a) A objeção intelectual, ou a loucura da cruz. Paulo já havia se deparado com desprezo intelectual em Atenas. Os filósofos o haviam insultado, chamando-o de spermologos, ou "apanhador de grãos". Esta palavra era aplicada literalmente a aves de rapina, e, por extensão, aos vagabundos que se alimentavam de restos de comida encontrados nas sarjetas. Metaforicamente, referia-se a mestres que se alimentavam apenas de idéias copiadas dos outros. Os atenienses veneravam a originalidade[9] e des­prezavam tudo que fosse retrógrado e obsoleto.

Os filósofos escarneceram quando foi mencionada a res­surreição.[10] Eles "zombaram dele" (BLH). Eu acho que isto significa que eles caíram na gargalhada. Como é que eles reagiram quando Paulo pregou sobre a cruz, isso Lucas não diz. Mas Paulo viu que ela era "escândalo para os judeus, loucura para os gentios".[11] Para o judeu incrédulo era inconcebível que o Messias devesse morrer "em ma­deiro", ou seja, sob a maldição de Deus.[12] Para o gentio incrédulo era ridículo imaginar que um deus, um dos imortais, morresse. Celso, o cínico do século II d.C, criticou os cristãos com o maior sarcasmo por causa disso. Con­forme Orígenes, ele achava que "ao adorarmos aquele que [como ele diz] foi feito prisioneiro e levado à morte, nós estamos agindo como" os outros, que na verdade adoravam os mortos.[13]

Corinto não havia escapado à arrogância intelectual de Atenas. Estas cidades distavam apenas cinquenta milhas uma da outra. A primeira Epístola de Paulo aos Coríntios evidencia muito claramente que o orgulho intelectual era um dos principais pecados da igreja em Corinto. Foi este o contexto em que Paulo tomou sua decisão de abrir mão da sabedoria do mundo em favor da "loucura da cruz". O que o aguardava era zombaria e escárnio. Mas ele sabia que "a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens".[14] Ainda hoje a mensagem da cruz é profun­damente desprezada. A doutrina bíblica evangélica da ex­piação de Jesus (que diz ter Cristo padecido em nosso lugar, como nosso substituto, a morte que merecíamos morrer) é rejeitada e até ridicularizada. É considerada "primitiva", "retórica", "injusta", "imoral" e "bárbara". A. J. Ayer chamou as doutrinas relacionadas ao pecado e à expiação de "intelectualmente desprezíveis e moralmente ultrajan­tes".[15] E um teólogo liberal contemporâneo descreveu aspectos da minha própria apresentação em A Cruz de Cristo como sendo "indefensáveis", "ininteligíveis", "não só inexplicáveis mas também incompreensíveis" e, portan­to, "incomunicáveis". Como é que devemos responder a essa bateria de epítetos negativos? Não negamos que certas formulações evangélicas têm sido desequilibradas e não-bíblicas. Sempre que relegamos Jesus Cristo ao papel de uma terceira pessoa, que interveio para nos resgatar de um Deus irado, fazemos dele uma caricatura ridícula e sujeita a condenação, já que Deus é quem amou o mundo e foi Deus quem tomou a iniciativa de enviar seu Filho para morrer por nós. Só que a iniciativa que ele tomou levou Cristo a ser "feito pecado" e "feito maldição" por nós,[16] e tal linguagem geralmente produz uma hostilidade extre­mamente emocional. Daí a tentação de retocar o evangelho do Cristo crucificado, de eliminar seus aspectos que causam mais objeções e de tentar adaptá-lo ao gosto dos sensíveis paladares modernos. Não é de admirar que o apóstolo pareça quase violento ao expressar sua decisão de "saber somente a Jesus Cristo", e especialmente a sua cruz. Ele teve de optar entre fidelidade e popularidade.

(b) A objeção religiosa, ou a exclusividade do evangelho. 

Se Paulo achou Atenas "cheia de ídolos"[17] é pouco provável que ele tenha achado os coríntios menos idólatras. Sabe-se que a cidade de Corinto tinha pelo menos duas dúzias de templos, cada um dedicado a uma divindade diferente. Ainda hoje existem remanescentes do antigo templo de Apolo, sete pilares maciços erguidos entre as ruínas de Corinto. E, por detrás da cidade, uns 2000 pés acima, ergue-se a rochosa Acrocorinto, onde existiu um dia o templo de Afrodite. Portanto, os coríntios, tal como os atenienses, eram "acentuadamente religiosos".[18] Eles adoravam muitos deuses, que toleravam uns aos outros em amigável co­existência.

Os coríntios não teriam criado tanta objeção caso os evangelistas cristãos se tivessem contentado em acrescen­tar Jesus ao seu já tão rico panteão. Só que o apóstolo Paulo, ao visitar a cidade, tinha em vista um objetivo muito diferente. Ele queria que Corinto, com todos os seus ha­bitantes e todos os seus deuses, se curvasse e adorasse Jesus. Ele chegou ali com a firme intenção de nada saber "senão Jesus Cristo, e este crucificado". Ele sabia muito bem, como lhes escreveu mais tarde, que havia "muitos 'deuses' e muitos 'senhores'" que disputavam a lealdade dos coríntios. Mas, para ele, havia "um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas, e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também por ele";[19] portanto, não estava disposto a se comprometer. Na opinião dele, a sua visita teria estabe­lecido um compromisso de casamento entre eles e Cristo; portanto, sentia por eles um zelo santo. "Eu vos tenho preparado para vos apresentar como virgem pura a um só esposo, que é Cristo", escreveu ele. "Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também sejam corrompidas as vossas mentes, e se apartem da simplicidade e pureza devidas a Cristo."[20] Afinal de contas, Jesus Cristo não iria dividir sua glória com Apolo ou Afrodite, ou qualquer outro que fosse.

A situação religiosa do mundo não mudou muito desde aqueles dias. E verdade que os velhos deuses da Grécia e de Roma já foram desacreditados e descartados há muito tempo. Mas em lugar deles surgiram novos deuses, assim como ressurgiram outras crenças antigas. Um dos resul­tados dos meios modernos de comunicação e da facilidade de viajar é que muitos países vêm se tornando cada vez mais pluralistas. O que as pessoas querem é um sincretismo fácil, uma trégua para a competição interreligiosa, uma mistura do que há de melhor em todas as religiões. Mas nós, cristãos, não podemos abrir mão, nem da supremacia, nem da unicidade de Jesus Cristo. Simplesmente não existe ninguém que seja igual a ele; sua encarnação, sua redenção e ressurreição não têm paralelos. Portanto, ele é o Media­dor — aliás, o único — entre Deus e a raça humana.[21] Esta afirmação da exclusividade de Jesus tem produzido ressen­timentos amargos e profundos. Muitos a consideram "in­toleravelmente intolerante". Mas, por amor à verdade, nós temos que mantê-la, por mais ofensa que possa causar. Este tópico eu volto a considerar no capítulo 18.

(c) A objeção pessoal, ou a humilhação do orgulho hu­mano. Todas as religiões, com exceção do cristianismo, têm em comum a arrogante idéia (expressa de diferentes ma­neiras) de que nós somos capazes, se não de conquistar a nossa salvação, pelo menos de contribuir substancialmente para ela. Essa doutrina da salvação própria engorda mui­tíssimo a nossa auto-estima. Ela agrada ao nosso orgu­lhoso ego e salva-nos do supremo embaraço de sermos humilhados diante da cruz.

Os coríntios não eram uma exceção; eles eram um povo orgulhoso. Tinham orgulho de sua cidade, a qual, após ter sido destruída um século antes em uma rebelião, fora caprichosamente reconstruída por Júlio César em 46 a.C. Orgulhavam-se do fato de que Augusto havia elevado Co­rinto acima de Atenas, tornando-a a capital da nova província da Acaia. Tinham orgulho do seu comércio, da sua afluência, da sua cultura, dos seus, jogos típicos e do seu zelo religioso.

Aí apareceu aquele missionário cristão afobado, um joão-ninguém metido a importante, um camaradinha feio e careca, de pernas tortas e sobrancelhas cerradas, que parecia não ter o mínimo respeito pela distinta cidade deles. E tinha a petulância de dizer a eles que nem sua sabedoria, nem sua opulência, nem sua religião poderiam salvá-los; que na verdade eles nem podiam fazer coisa alguma para salvar -se do juízo de Deus, e nem sequer ajudar a conquistar a sua própria salvação; que por isso é que Jesus Cristo havia morrido por eles; e que, sem ele, todos eles iriam perecer. Quem ele achava que era para insultá-los desse jeito?! Era humilhação demais para um povo tão orgulhoso! A men­sagem da cruz era uma pedra de tropeço, tanto para or­gulhosos judeus quanto para gentios orgulhosos. Não é de admirar que a principal resposta ao evangelho em Corinto tenha vindo dos mais baixos escalões da sociedade: "Ir­mãos, reparai na vossa vocação... não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento." Pelo contrário, foram os loucos, os fracos, os humildes e os desprezados, que sabiam que nada tinham a oferecer, que Deus escolheu e chamou.[22]

Ainda hoje não existe uma coisa que leve tanta gente a abdicar do reino de Deus quanto o orgulho. Como disse Emil Brunner, em todas as outras religiões "o homem é poupado da suprema humilhação de saber que o Mediador (no caso, Jesus Cristo) deve sofrer a punição em seu lugar... Elas não o deixam absolutamente despido."[23] O evangelho, porém, nos desnuda (não temos nenhuma roupa com que nos apresentar diante de Deus) e nos declara falidos (não temos dinheiro algum com o qual comprar o favor dos céus).

(d) A objeção moral, ou o chamado ao arrependimento e à santidade. Corinto era um próspero centro comercial, que comandava as rotas de negócios, tanto no sentido norte-sul por via terrestre como leste-oeste através do mar.

A cidade, portanto, vivia cheia de mercadores, viajantes e navegadores. Já que eram estrangeiros numa cidade estranha, eles pouco se preocupavam com restrições morais. Alem disso, Afrodite, conhecida pelos romanos como Vênus, a deusa do amor, reinava em seu templo acima da cidade, encorajava a promiscuidade sexual entre os seus devotos e proporcionava milhares de prostitutas que vagavam à noite pelas ruas da cidade. Era uma verdadeira "feira da vaidade" do mundo antigo. O verbo grego korinthiazomai significava "praticar a imoralidade".

De uma cidade descaradamente imoral como Corinto não era mesmo de se esperar que acolhesse o evangelho, com seus apelos ao arrependimento, suas advertências de que os sexualmente corruptos não herdarão o reino de Deus[24] e com sua insistência no fato de que após a justificação vem a santificação (crescer em santidade) e depois da santificação vem a glorificação (quando o mal será abolido).

O mundo moderno não é em nada mais receptivo do que o mundo antigo no que concerne ao chamado do evangelho para o domínio próprio. Ele gosta de dizer que esse negócio de absolutos morais já não existe mais, que moralidade sexual é apenas uma questão de costumes sexuais, que a abstinência é uma coisa ruim e a permissividade uma coisa boa, e que o cristianismo, com suas proibições, é inimigo da liberdade.

(e) A objeção política, ou o senhorio de Jesus Cristo. Havia no Império Romano uma boa dose de fervor político (para não dizer fanatismo). Leais procuradores romanos tendiam a incentivá-lo e agiam com toda crueldade para acalmar qualquer tentativa de rebelião. Convém lembrar­mos que o próprio Jesus foi condenado numa corte romana pela ofensa política da sedição, por declarar ser um rei, em rivalidade a César. Paulo e Silas, de igual forma, foram acusados em Filipos de estarem "propagando costumes que não podemos receber nem praticar porque somos roma­nos",[25] enquanto que em Tessalônica disseram que eles estavam "procedendo contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei".[26]

Eram falsas ou verdadeiras essas acusações? Eram falsas e eram verdadeiras. Naturalmente, nem Jesus nem os apóstolos jamais instigaram rebelião armada contra Roma. Eles não eram zelotas. Mas eles proclamaram, sim, que Jesus havia anunciado ter chegado o reino de Deus, que seu reino tinha prioridade sobre todas as outras lealdades, menos importantes, que esse reino se espalharia pelo mundo todo e que o rei iria voltar para assumir o poder e o reino. Tinha todo o jeito de sedição. Na verdade, era sedição, se é que sedição significa negar ao estado autoridade incon­testável, dando-a ao Cristo de Deus.

Ainda hoje, se há uma coisa que um regime totalitário não consegue suportar é que lhe neguem a lealdade absoluta que ele exige. Os cristãos submetem-se conscientemente ao estado, desde que a autoridade que lhe é dada por Deus seja usada para promover o bem e punir o mal; nunca, porém, iremos adorar o estado. E a Cristo que nós adoramos, a Cristo, a quem foi dada toda a autoridade no céu e na terra, pois ele morreu e ressuscitou a fim de ser o Senhor de tudo.

Eis aqui, pois, cinco objeções que se costumam fazer ao evangelho de Cristo e sua cruz, e que Paulo esperava encontrar em Corinto. Ele sabia que sua mensagem do Cristo crucificado seria considerada intelectualmente loucura (incompatível com a sabedoria), religiosamente exclusiva (incompatível com a tolerância), pessoalmente humilhante (incompatível com a auto-estima), moralmen­te exigente (incompatível com a liberdade) e politicamente subversiva (incompatível com o patriotismo).

Não é de admirar que Paulo se sentisse "fraco e tremendo de medo"[27] e admitisse que precisava tomar uma decisão. Foi, por um lado, uma decisão negativa, de abrir mão da sabedoria do mundo, ou seja, de todo sistema que se oferece como uma alternativa para o evangelho; e, por outro lado, foi uma decisão positiva, de só proclamar Jesus Cristo e especialmente sua cruz. Hoje nós nos deparamos com a mesma alternativa. Temos que escolher entre a sabedoria do inundo, que é loucura para Deus, e a loucura da cruz, que é a sabedoria de Deus.

O poder do Espírito

Certos cristãos contemporâneos, se ouvissem Paulo con­fessar que sentia fraqueza, temor e tremor, com certeza iriam repreendê-lo. "Paulo", diriam eles, "você não tem nada que ficar nervoso ou com medo. Anime-se! Você não sabe o que é ser cheio do Espírito Santo? Você tem que ser forte, ousado e corajoso!"

Mas Paulo não temia admitir que estava com medo. Para dizer a verdade, ele tinha um poderoso intelecto e uma forte personalidade, e esses poderes ele havia dedicado a Cristo. Mas ele era também fisicamente fraco e emocionalmente vulnerável. Segundo a tradição, sua aparência não era nada atraente. Conforme os seus críticos, suas cartas eram "graves e fortes; mas a presença pessoal dele era fraca, e a palavra desprezível".[28] Portanto, ele nada tinha que chamasse aten­ção, fosse para vê-lo, fosse para escutá-lo. Além disso, algum tipo de enfermidade (o seu chamado "espinho na carne"[29]) parece ter afetado sua visão, ou mesmo desfigurado-o.[30] E ele sabia da impopularidade do seu evangelho, da oposição que se levantaria em Corinto e, portanto, do custo de ser fiel a ele.

Mas, então, em que ele depositou a sua confiança? Ele nos dá a resposta em 1 Coríntios 2.4-5. Sua confiança não estava em "linguagem persuasiva de sabedoria" (ERAB) ou em "linguagem de sabedoria humana" (BLH). Isto é, ele não se baseava, nem na sabedoria nem na eloquência do mundo. Ao invés da sabedoria do mundo ele pregava a Cristo e sua cruz (v. 1-2), e em vez da retórica do mundo ele confiava na poderosa demonstração que o Espírito Santo dá à palavra. Afinal, somente o Espírito Santo pode convencer as pessoas dos seus pecados e necessidades, abrir-lhes os olhos para enxergarem a verdade do Cristo crucificado, dobrar sua orgulhosa vontade e submetê-las a ele, libertá-las a fim de crerem nele, e dar-lhes um novo nascimento. Esta é a poderosa "demonstração" que o Espírito Santo dá a palavras ditas em fraqueza humana.

Esta questão do "poder através da fraqueza" é um ele­mento vital na correspondência corintiana de Paulo. Em ambas as cartas existentes o apóstolo enfatiza que é através da fraqueza humana que melhor opera o poder divino. Ele insinua que Deus, deliberadamente, torna fraco o seu povo e o mantém assim, a fim de mostrar que o poder é dele.[31] Paulo chega até a dizer que este princípio se aplica tanto a Deus quanto a nós, pois é através da sua própria fraqueza na cruz que ele manifesta o seu poder de salvar.

Em 1 Coríntios 1 e 2 o mesmo tema do poder através da fraqueza se repete em três variações. Primeiro, nossa mensagem é fraca e louca (Cristo e a cruz). Segundo, ela é proclamada por pregadores fracos e loucos. Terceiro, ela é acolhida por pessoas fracas e loucas. Assim, Deus esco­lheu um instrumento fraco (Paulo) para levar uma men­sagem fraca (a cruz) a pessoas fracas (os operários de Corinto). Por quê? "A fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus" e para que "aquele que se gloria, glorie-se no Senhor".[32]

Os cinco primeiros versículos de 1 Coríntios 2 são talvez a mais nobre e mais preciosa declaração feita no Novo Testamento sobre a evangelização. Eles nos dizem que o evangelho é a verdade proveniente de Deus acerca de Cristo e sua cruz no poder do Espírito. Assim, o evangelho não é especulação humana, mas, sim, revelação divina; não é sabedoria popular, mas Cristo e sua desprezada cruz; não é imposto através de propagandas ou personalidades, mas é transmitido pelo Espírito Santo. O evangelho vem de Deus, concentra-se em Cristo, e este crucificado, e é au­tenticado pelo Espírito Santo. É este é o evangelho trinitário do Novo Testamento.

Fonte: Stott, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. São Paulo: ABU Editora, 2005.


[1] 1 Co 2.1-5.
[2] 1 Co 1.20-21
[3] C. H. Hodge, The First Epistle to the Corinthians (1857; Banner of Truth, 1959), p. 29
[4] 2 Co 5.11; cf. At 18.13
[5] J. Gresham Machen, The Christicm Failli in the Modem World (1936; Eerdmans,
1947), p. 63
[6] At 17.34
[7] At 17.18
[8] Para uma refutação mais completa a esta interpretação popular, ver meu livro A
Mensagem de Atos (ABU, 1994), pp. 324-326
[9] At 17.18, 21
[10] At 17.32
[11] 1 Co 1.23
[12] G1 3.13
[13] Orígenes, Against Celsus, III. 34
[14] 1 Co 1.25
[15] The Guardian Weekly, 30/08/79
[16] 2 Co 5.21; Gl 3.13
[17] At 17.16
[18] At 17.22
[19] 1 Co 8.5-6
[20] 2 Co 11.2-3
[21] 1 Tm 2.5
[22] 1 Co 1.26-29
[23] Emil Brunner, The Mediator (1927; Westminster, 1947), p. 474
[24] ICo 6.9-10
[25] At 16.21
[26] At 17.7
[27] 1 Co 2.3 (BLH)
[28] 2 Co 10.10
[29] 2 Co 12.7
[30] Por exemplo, em Gl 4.13-14
[31] Ver hina ("a fim de que") em 2 Co 4.7 e 12.9-10
[32] 1 Co 1.29-31

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